Uma coisa é gozar a vida; outra, gozar com a vida. Gozar a vida pressupõe acolhê-la. Usufruí-la. Senti-la. Galanteá-la. Saboreá-la. E aproveitá-la. Gozar com a vida será, pelo contrário, uma forma de a escarnecer. De a desconsiderar. De certo modo, de a ignorar. De a ensombrar. Ou, pelo menos, de a minimizar. Gozar a vida significa alegrar-mo-nos com ela. Gozar com a vida cansarmo-nos dela. Eu acho que, mesmo quando não temos consciência disso, gozamos mais com a vida do que gozamos a vida. E o trabalho – que pode ser um recurso precioso para se gozar a vida – corre o risco de ser o principal responsável pelo modo como não a gozamos. E ele – talvez porque imaginemos que temos “a vida toda” e que ela pode esperar – mesmo sem querermos, empurra-nos, quase constantemente, para um limiar em que, em vez de vivermos a vida, “troçamos” dela. O trabalho tira-nos tempo para viver. E, no entanto, ele será quem mais nos dá as condições para viver melhor.

A verdade é que a nossa relação com trabalho raramente é equilibrada. Ele “engole-nos” horas sobre horas. De forma desregrada. E, por mais que haja regras que o regulem, o trabalho expande-se sempre, mais um bocadinho, para “fora de horas”. Talvez seja por isso que se tenha criado a ideia que quem chega “à hora” e sai a horas do trabalho, terá uma relação pouco dedicada e pouco profissional com ele. Ao invés daqueles que “vestem a camisola”. Que, duma forma urbana, tanto englobam os que se deixam entusiasmar pelos objectivos duma empresa, por exemplo, como aqueles que se deixam explorar com boa disposição. E de sorriso nos lábios.

Vendermos trabalho tem, ainda, muito da primeira revolução industrial. São raras as vezes em que se paga o preço justo pelo trabalho. E são raras as vezes em que “os recursos humanos” representam um instrumento inteligente colocado ao serviço das características pessoais de cada trabalhador, dedicado a uma tarefa, que ele passe a desempenhar de forma singular. Pelo contrário, antes se massifica o trabalho. Como se, independentemente daquilo que somos, fosse suposto que trabalhássemos todos da mesma maneira, à mesma velocidade, de forma mecânica, sem pensar, sem criar e, mesmo, sem dialogar. Como se fôssemos mais “máquinas”’do que, propriamente, pessoas. Como se repetir uma tarefa nos tornasse mais engenhosos e mais eficazes no seu desempenho. Como se, pelo contrário, isso não nos banalizasse, não nos entediasse, não nos estupidificasse, não nos destruísse e não nos matasse. A trabalhar…

É por isso que eu acho graça que se fale de motivação e de outros jargões da psicologia, a propósito do trabalho. Os vencimentos motivam? Claro que sim. Mas a forma como nos acolhem, como nos respeitam, como nos escutam ou como pomos muito de nós numa tarefa, também. Mas, em relação à forma como se gere o trabalho, parece fazer regra a máxima que afirma que: “Quem não confia não é de confiar”. Daí que haja controlos biométricos no trabalho. Ou tempos definidos para se ir à casa de banho, por exemplo. Tudo porque sem um controle apertado e um bocadinho “bigbrotheriano” quem trabalha parece ser tentado a engonhar e a enganar. E se aproveite da função que lhe é confiada no trabalho para uma espécie de charlatanice que, curiosamente, o trabalho a partir de casa e a pandemia se encarregaram de desmascarar.

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A verdade é que esta cultura do trabalho, vista num registo assim, fez com que se fosse criando um impasse entre aquilo que damos ao trabalho e o que ele nos exige. Que favorece uma “nomenclatura” de tecnocratas mais ou menos pardacentos (mas cheios de “auto-estima”) que disfarçam as competências que não lhes reconhecemos com tiques de prepotênciazinha que só complicam o trabalho, o tornam mais caro e muitíssimo menos produtivo. E fazem de inúmeras tarefas do nosso trabalho uma forma de não só não gozarmos a vida mas de vermos a nossa inteligência gozada por eles. E que parece criar uma engrenagem que faz com que o trabalho adormeça as pessoas e as distraia de si.

Seja como for, se a escola democratizou o mundo, o trabalho não deixa, também, de o fazer. Mesmo quando todos vivemos, ainda, numa atmosfera modernista que enfatiza o individualismo e o progresso. Onde cumprir “objectivos” parece adequar-se muito mais a metas profissionais do que à vida pessoal. E onde as prioridades que se estruturam entre a vida pessoal e os compromissos profissionais pareçam estar, vezes demais, invertidas. Onde é comum – considerando o tempo que se leva de casa ao trabalho e vice-versa – que se dediquem ao trabalho mais de 55 horas por semana, por mais que a Organização Mundial da Saúde alerte para a forma como esse valor de horas de trabalho contribuirá para um aumento de 35% no risco de AVC e de 17% de morte por enfarte, quando comparado com um horário de trabalho de 35 ou 40 horas por semana (e não trabalharão muitas crianças 55 e mais horas, por semana?). E onde os “esgotamentos” de antigamente, hoje, se chamam burnout.

Será o burnout um epidemia atípica dos tempos modernos? Eu acho que não. Por mais que hoje nos “matemos” mais a trabalhar, as pessoas vivem espartilhadas em inúmeros compromissos que as amalgamam, aos quais não dão tempo nem sobre os quais, sequer, falam. É verdade que o trabalho é glutão e que promove tensões, conflitos e dramas. Mas é, também, verdade que ao burnout não se chega só com a ajuda do trabalho. Muitos de nós refugiamo-nos no trabalho. Quase como forma de “esquecermos” tudo o resto que está desarrumado dentro de nós: os amores, a família ou os filhos. Às vezes, parecemos ir buscar ao trabalho os motivos que nos faltam para termos respeito por nós. Como se, à parte dele, pouco nos realizasse. E aí, quando o trabalho, como escora, fraqueja, é natural que tudo se desmorone. E que o burnout espreite. E, depois, nós precisamos de desafios novos e sempre mais complexos. E o trabalho não satisfaz, permanentemente, essas necessidades. E o burnout acentua-se. E, a seguir, as novas tecnologias, os smartphones e o correio electrónico, constantemente a infernizarem-nos, tornam-nos, muito facilmente, workaholics. E, a seguir, gerem continuados episódios de pânico. Para que, depois, desertifiquem as nossas relações; e as degradem. Até que, finalmente, nos encaminhem para a exaustão física e psíquica. E nos destruam, devagarinho. Ou delapidem tudo o que fazia sentido na nossa vida. Ou nos levem a passar ao lado da vida dos nossos filhos. Ou façam com que o nosso corpo imponha as condições que nós não fomos capazes de impor a nós próprios, diante do trabalho. O trabalho, que é uma encruzilhada de muitos dos nosso caminhos – e que, por isso mesmo, nos pode realizar, dando-nos vida – parece estar a tornar-se, para muitos de nós, numa droga legal. Como se procurar a “boa vida” fosse sinónimo de preguiça e de falta de compromisso com o trabalho. E “andar na má vida” quisesse dizer que, de experiência de prazer em experiência de prazer, vivêssemos numa embriaguez incompatível com o trabalho.

Na verdade, se trabalhássemos menos, com outro método, em trabalhos que tivessem mais “a nossa cara”, se não fizéssemos com que o trabalho cavalgasse sobre a nossa família, e se a gestão do trabalho estivesse no século XXI em vez de se encontrar algures entre os séculos XIX e XX, as pessoas produziriam mais, com mais contributos pessoais e com menos conflitos no trabalho. E seriam mais felizes. O que parece quase estranho num mundo que se preocupa mais em comer ovos de galinhas felizes. Beber leite de vacas mais felizes. E acredita que as regras da ecologia tornam o ambiente e o corpo mais felizes. E mais saudáveis, claro. Só que parece que não está previsto que se possa ser feliz no trabalho. E realizado – muito menos, ao mesmo tempo – na vida pessoal. O segredo não está nem nas nossas escolhas. Nem na gestão dos recursos humanos. O segredo, todos o sabemos, será: ou gozamos a vida e comprometemos o trabalho; ou trabalhamos e gozamos com a vida. Talvez seja por isso que a vida nos canse. O que não se entende é que, desde muito cedo, iniciemos as crianças neste vício. E que se continue a ouvir, com bonomia, quem, de forma elogiosa para si próprio, afirme que só trabalha porque não sabe fazer mais nada. Quando o sofrimento humano nos merece um sorriso, gozamos com a vida. E isso é mau.

Porque é que as pessoas inteligentes se “matam” a trabalhar? Porque o trabalho, à conta do que nos tira, nos torna burros e a gozar com a vida, vezes demais. Em vez de a gozarmos e trabalharmos, ao mesmo tempo. Procurando ser felizes.