O trabalho serve para crescer. Põe-nos problemas sempre mais complexos que nos obrigam a pensar melhor, de forma mais simples, dum jeito mais prático, e (de preferência) mais rápido e mais eficaz. Socializa-nos e coloca-nos o desafio de chegarmos sempre a mais pessoas, todas elas diferentes, e, em função disso, a conhecer-mo-nos melhor, e a não perder de vista a reputação que pelas suas mãos queremos para nós. Desafia-nos a conciliar o gozo de aprofundar o engenho de nos especializarmos sem que com isso viremos as costas à humildade e ao reconhecimento daquilo que não sabemos fazer, e que outros transformam, tantas vezes, numa arte. Obriga-nos a atribuir um preço justo àquilo que produzimos e, em função dele, a concorrer e a competir com outros, tornando-nos mais inimitáveis, mais singulares e sempre melhores. E convida-nos a conciliar prazer e realismo, levando a que haja pessoas que se divertem tanto fazendo aquilo que fazem que, vendo bem, são pagas para brincar.

Mas sendo um pouco tudo isto, são cada vez mais as pessoas que vivem o trabalho à beira dum colapso permanente. Consomem-se com o trabalho. Esgotam-se no trabalho. E reclamam estar em burnout. O trabalho está a ser responsável pelo agravamento de stress crónico, das crises de pânico, dos estados de despersonalização e de depressão, e contribui para a descompensação de perturbações de personalidade que com ele abrem para estados psicopatológicos mais graves. A forma controleira como se organiza o trabalho faz mal à saúde. O modo como se paga o trabalho parece não corresponder àquilo que lhe damos. As relações de trabalho permitem que o assédio moral seja vivido quase com naturalidade. A forma como se taxa o trabalho é desequilibrada e insana. As avaliações do trabalho presas a quotas e com agendas secretas – por mais que pareça democrática e justa – é, na maior das vezes, mentirosa e batoteira. O trabalho torna, em imensas circunstâncias, as pessoas mais cansadas com a vida. Mais feias. Mais estúpidas. Mais infelizes. E piores pessoas. E, em muitos momentos, não deixa de continuar a ser uma espécie de exploração do Homem pelo Homem. Não compra a liberdade. Antes parece ter-se transformado numa adição estimulada por todos.

Com formas tão díspares de viver o trabalho como pode o mundo ser mais democrático? Como não há-de existir uma desigualdade essencial que divide as pessoas entre aquelas que ganham a vida (que ganham à vida, que ganham vida, que transformam vida em vivacidade) e aquelas que se cansam com ela (para quem o trabalho representa uma espécie de reforma antecipada em relação à vida, agravada todos os dias)? É por isto que eu gosto dos adolescentes quando, depois de lhes perguntarmos o que querem vir a ser, quando forem “grandes”, eles respondem – de forma provocatória – que querem ser reformados. Não que isso queira dizer que sejam amigos da preguiça e da “boa vida”. Mas como não eles hão-de aspirar a olhar para os reformados com admiração se só aí parece ser possível ter vida? Como não hão-de eles querer ter tempo livre em vez de viverem presos no tempo? Depois da industrialização dos meios de produção vivemos um tempo de “produção industrial” de pessoas. O crescimento industrializou-se. A escola industrializou-se. A universidade industrializou-se. O trabalho, todo o trabalho, industrializou-se. O desporto passou a ser uma indústria. Como não hão-de os adolescentes querer ser diferentes se o crescimento parece ter-se transformado numa linha de produção industrial de “produtos normalizados”? A industrialização das pessoas confere-lhes liberdades mas prende-as no tempo. Por isso eu mesmo, eu acho que a falência de saúde mental de muitas delas diante do trabalho é a forma possível (saudável, todavia) de dizer: “basta!”. “Não quero ser como sou!”. “Não suporto a vida que tenho!”. Como não hão-de os nossos filhos adolescentes ignorar as diferenças entre o trabalho como fonte de crescimento e o trabalho como adição estimulada por todos?

Como podem os nossos filhos dar-nos ouvidos em relação ao trabalho e ao futuro se não lhes damos o tempo livre com que se aprende a escutar e, por entre todas as diferenças, se erige a liberdade? Quantas vezes lhes dados a oportunidade de chegarem ao espanto? E se não damos, como achamos que podem eles ser movidos por entre as dúvidas se lhes falta esse farol? Não será o encanto que se extrai da beleza das coisas simples aquilo que os faz ir até ao ócio (no sentido dos antigos latinos quando transformaram do grego a palavra escolé – escola – em ócio, como tempo de escuta, de interrogação e de interiorização, como diz o meu amigo Vasco Pinto de Magalhães)? Se todo o aprender se faz com tempo e com vagar, como podemos esperar que vivendo depressa, de forma agitada e passando, sobretudo, sobre as coisas, eles consigam crescer, aprendendo com aquilo que se vive? Será que nos damos conta da forma como, ao puxarmos os nossos filhos para a forma industrial de crescer estamos a comprometer a sua vida, por mais que o façamos na esperança de que eles tenham uma vida melhor?

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