Tomando a gíria do empreendedorismo, poderá dizer-se que nas últimas duas semanas “aconteceu” Europa e que isso só foi possível porque alguém a “fez acontecer”.

Interessa-nos pensar em como tudo aconteceu e que papel teve e pode ter Portugal no concerto das nações europeias.

Na semana passada, o Primeiro-Ministro brindou o continente com uma espécie de tour, visitando capitais e aliados. Começou por assegurar que os jornalistas captavam a sua vénia a Mark Rutte, que parece ter passado de repugnante a não repugnante, para voltar a ser repugnante durante o fim de semana e acabar agora numa espécie de limbo, por ter permitido um acordo — inaugurando-se, assim, a categoria política do repugnante de Schrödinger. Logo depois, num ponto alto da sua carreira, descobriu em Budapeste que é na berma da democracia liberal que se reencontram os belos espíritos num pensamento comum: o Estado de Direito é uma ideia bonita, mas não vale a pena perder fundos a defendê-lo.

No Conselho Europeu, entrando armado com um baú de cortiça carregado de máscaras ornamentadas com todos os estereótipos sobre Portugal, aparentemente sob o desígnio de “vender o país”, nome de doença que normalmente afeta os ministros da Economia, condenados a penar de feira em feira provando licores e admirando sapatos, sai sem uma intervenção que mereça reparo, com exceção da descrição assustadora que a Bloomberg fez sobre o seu “posicionamento”: “Portugal’s Antonio Costa sprawled out on a sofa as he waited for all the leaders to reconvene” — um bonito epitáfio, que o respeito pela função e pelo país me impede de traduzir.

Para lá desse lado performativo, o estranho eclipse teve consequências práticas. Com a política europeia partida entre os pequenos clubes dos “Frugais” e dos gastadores, tutelados pela entente franco-alemã, um lugar à mesa era propriedade valiosa e a ausência de António Costa, notada nas fotografias que anunciavam reuniões entre pequenos grupos, é a primeira oportunidade que o país perdeu no contexto da recuperação. Ficou evidente a incapacidade para executar uma política europeia que não seja exclusivamente dependente dos dois objetivos comezinhos e habituais: mais cargos e mais dinheiro.

Desta vez haverá muito dinheiro, é verdade. Segundo dados do Governo, serão mais de seis mil milhões de euros por ano, ou 3% do PIB (antes da queda abrupta de 2020). Ainda assim, não é menos verdade que houve muito dinheiro europeu nos últimos 30 anos e isso não impediu o país de se manter confortavelmente na cauda de um corpo que foi ficando cada vez maior.

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Como proposta radical, talvez seja o momento de negociar as palavras e não só os números que saem de Bruxelas, tentando moldar as políticas europeias aos interesses nacionais, aproveitando a conjuntura favorável ao Governo para reunificar um bloco estratégico favorável aos interesses nacionais.

Itália e Espanha, que dirigiram a oposição aos Frugais, são aliados naturais de Portugal num momento de especial proximidade. Atualmente liderados por governos à esquerda, em combinações entre partidos tradicionais e partidos jovens e distantes do centro, são também países endividados, envelhecidos e há muito estagnados. As semelhanças com Portugal são evidentes e se a criação de uma espécie de Liga dos Últimos da União pode parecer uma hipótese pouco
sedutora, não devemos esquecer que as alianças entre iguais têm vantagens.

Em primeiro lugar, a ideia não é nova. Esse bloco do Mediterrâneo seria apenas a segunda vida de um projeto do governo Rajoy, que em 2013 constituiu um grupo informal entre Espanha, Portugal, Itália, França, Malta, Chipre e Grécia, com o objetivo de concertar esforços, aproveitando as semelhanças históricas, culturais e económicas para exercer influência europeia. Maliciosamente, o grupo ficou conhecido como “Club Med” e acabou por desaparecer já com Pedro Sánchez. Se em 2013 foi possível aproximar Rajoy, Hollande e Passos Coelho, muito mais fácil será hoje reunir Sanchéz, Macron e Costa.

Para além do argumento histórico, a maior vantagem de juntar países parecidos é, como nos relembrou este Conselho Europeu, o grande poder que um bloco coeso de pequenos Estados pode reunir – os pequenos Frugais enfrentaram o consenso e conseguiram cedências bem para lá da sua dimensão. Por outro lado, a necessidade aguça o engenho e a querela com os Frugais não é apenas contabilística, mas também existencial, já que para alguns países a atual crise ameaça a viabilidade dos seus projetos de Estado.

Não tem sido essa a opção do Primeiro-Ministro. A aliança que Costa imaginou com Sánchez para a Europa é a dos “Amigos da Coesão”, soturna agremiação que dispensa a França para se juntar ao “Grupo de Visegrado”, por sua vez composto pelos Estados-membros que normalmente só aparecem nas notícias pelos ataques à democracia liberal. O programa político desses Amigos é (foi?) exclusivamente orçamental, como lembrou o encontro fraterno com Viktor Orbán, na expectativa de obter mais fundos europeus.

É uma opção superficial e pouco natural, que tenta fazer de Portugal um país do Leste, fica longe de uma verdadeira política europeia e traz desvantagens para o Estado de Direito na União. Não parece que o Governo a tenha tomado por desejar uma experiência de democracia iliberal em Portugal, mas antes porque, tal como esses países do Leste, prefere uma União Europeia que faça transferências em vez de perguntas.

Uma objeção que legitimamente se pode levantar ao argumento deste artigo é a dos resultados. Afinal, terminadas as negociações, o Primeiro-Ministro pôde regressar a Lisboa com a promessa de cheques chorudos, no que só pode ser entendido como uma vitória da atual estratégia. No entanto, o desaparecimento durante as discussões e as equivocadas alianças fora delas fez com que António Costa regressasse a Lisboa sem estar mais perto de oferecer uma solução para a dívida esmagadora, para o declínio económico e populacional, ou para as gerações que temem não viver tão bem como os seus pais, os verdadeiros problemas nacionais que a pandemia apenas agravou. Com este acordo passivo, Portugal ficou ainda menos dono do seu futuro e o Primeiro-Ministro, enfim, como uma daquelas pessoas que, como já se escreveu neste jornal, “não fazem nada, não têm nada, tudo lhes acontece”.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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