Uma das vezes em que a aliança bilateral luso-inglesa foi formalmente invocada ocorreu na II Guerra Mundial, mais precisamente em 1943, nos seguintes termos retirados do extrato da sessão de 12 de outubro desse ano do parlamento britânico:
“The Prime Minister (Mr. Churchill)I have an announcement to make to the House arising out of the Treaty signed between this country and Portugal in the year 1373 between His Majesty King Edward III and King Ferdinand and Queen Eleanor of Portugal. This Treaty was reinforced in various forms by Treaties of 1386, 1643, 1654, 1660, 1661, 1703 and 1815 and in a secret declaration of 1899. In more modern times, the validity of the old Treaties was recognised in the Treaties of Arbitration concluded with Portugal in 1904 and 1914. Article I of the Treaty of 1373 runs as follows:
“In the first place we settle and covenant that there shall be from this day forward … true, faithful, constant, mutual and perpetual friendships, unions, alliances and needs of sincere affection and that as true and faithful friends we shall henceforth, reciprocally, be friends to friends and enemies to enemies, and shall assist, maintain and uphold each other mutually, by sea and by land, against all men that may live or die.”
This engagement has lasted now for over 600 years and is without parallel in world history. I have now to announce its latest application … His Majesty’s Government in the United Kingdom, basing themselves upon this ancient Alliance, have now requested the Portuguese Government to accord them certain facilities in the Azores which will enable better protection to be provided for merchant shipping in the Atlantic…
In the view of His Majesty’s Government, this Agreement should give new life and vigour to the Alliance which has so long existed between the United Kingdom and Portugal to their mutual advantage. It not only confirms and strengthens the political guarantees resulting from the Treaties of Alliance, but also affords a new proof of Anglo-Portuguese friendship and provides an additional guarantee for the development of this friendship in the future.”
O extraordinário nesta declaração é a extensão temporal pela qual se tem estendido a aliança inglesa, que Churchill reconhece ser “without parallel in world history”.
Como se explica que uma aliança bilateral tenha durado mais de seis séculos? Não é certamente apenas pelos interesses que uniam, no séc. XIV, os reis Edward III e Fernando I; ou John of Gaunt e D. João I. Algo prevaleceu ao longo dos séculos que lhe deu uma consistência própria, uma permanência e uma constância, apesar dos incidentes e divergências que se verificaram no percorrer histórico das duas nações. Como na crise do Ultimatumde 1890 que, vista hoje à luz do distanciamento histórico, se encontrava longe de merecer o alarde mediático que lhe foi dado. Portugal queria unir Angola e Moçambique através do continente africano, o que era contrário aos interesses ingleses de construírem uma linha férrea “do Cabo ao Cairo”. Por isso exigiram a retirada das tropas portuguesas situadas no interior do continente. Mas, contrariamente ao que chegou a ser proclamado, não houve qualquer ameaça de bombardeamento naval de Lisboa, apenas de retirada do embaixador britânico.
Nos momentos mais dramáticos da história europeia que envolveram o espaço geográfico peninsular, os dois países estiveram do mesmo lado: a Guerra dos 100 anos no sec. XIV; a Guerra dos 30 anos no séc. XVII; a Guerra da sucessão de Espanha e a Guerra dos 7 anos no séc. XVIII; o bloqueio continental e as invasões napoleónicas no séc. XIX; e as I Grande Guerra e II Guerra Mundial no séc. XX.
Efetivamente, a tão proclamada “neutralidade colaborante” na II Guerra Mundial, expressão já de si contraditória, não foi mais do que uma ficção para iludir a Alemanha e evitar estender a guerra à península, como o próprio Churchill declara mais adiante na referida alocução ao parlamento, concluindo pelo elogio da “attitude of the Portuguese Government, whose loyalty to their British Ally never wavered in the darkest hours of the war”.
Qual a chave desta prevalência? Qual o elemento que a torna inalterável ao longo de tantos séculos e de tantos regimes políticos diferentes? O que leva dois países a, recorrentemente, estarem do mesmo lado precisamente nas veredas mais difíceis e tortuosas da história?
A chave desta constante não pode ser alheia à geografia, condição permanente e inalterável das nações. E à conceptualização geopolítica que divide as potências em marítimas e continentais. Portugal e o Reino Unido pertencem indelevelmente à primeira categoria.
Este equilíbrio entre potências marítimas e continentais constitui uma constante da história europeia. Durante séculos a política externa inglesa consistiu precisamente em evitar o surgimento de potências hegemónicas continentais na Europa. E Portugal beneficiou desta política, que lhe permitiu combater a pressão continental, constatada também ciclicamente ao longo da história.
É possível conceber uma Europa sem o Reino Unido? Não. Só uma mentalidade continental pode admitir essa possibilidade. E todos conhecemos as consequências que esse tipo de pensamento trouxeram para a história europeia, expressas de diferentes formas nos conflitos acima enunciados.
Por isso, no que diz respeito ao Brexit, é lamentável que se possa admitir a possibilidade de que Portugal possa ganhar alguma coisa com a saída do Reino Unido da UE. Achar que Portugal pode participar alegremente dos despojos do Brexit juntamente com outros países europeus é desconhecer as lições do passado e pôr o curto prazo à frente do longo prazo. Afirmar que o Brexit “objetivamente é uma vantagem para Portugal e Espanha“, especialmente no decurso de uma visita oficial a Madrid, foi infeliz.
Os russos dizem que quem olha para o passado perde um olho, mas quem não olha perde os dois. É por vezes doloroso olhar para o passado, mas não o enfrentar significa ficarmos cegos e sem rumo perante as circunstâncias do presente.
Vejamos o caso do Tratado de Fontainebleau de 27 de outubro 1807 assinado entre a Espanha e a França, no que dispôs relativamente a Portugal:
“Artigo 1. — A província de Entre Douro e Minho, com a cidade do Porto, será trespassada em plena propriedade e soberania para Sua Majestade o Rei da Etrúria, com o título de Rei da Lusitânia Setentrional. [Artigo 9. — Sua Majestade o Rei da Etrúria, cede o Reino da Etrúria em plena propriedade e soberania a Sua Majestade o Imperador dos Franceses e Rei da Itália.]
Artigo 2. — A província do Alentejo e o reino dos Algarves se trespassarão em plena propriedade e soberania para o Príncipe da Paz (Manuel Godoy, primeiro ministro espanhol e chefe do exército espanhol invasor), para serem por ele gozados, debaixo do título de Príncipe dos Algarves.
Artigo 3. — As províncias da Beira, Trás-os-Montes e Estremadura portuguesa, ficarão por dispor até que haja uma paz, e então se disporá delas segundo as circunstâncias, e segundo o que se concordar entre as duas partes contratantes
…
Artigo 13. — As duas altas partes contratantes concordam mutuamente em uma igual divisão das ilhas, colónias e outras possessões ultramarinas de Portugal.”
O anexo ao Tratado estipulava que
“Artigo 1 — Um corpo de tropas imperiais francesas de 25 000 homens de infantaria e 3 000 de cavalaria entrará em Espanha e marchará directamente para Lisboa; unir-se-ão a estas um corpo de 8 000 homens de infantaria espanhola, e 3 000 de cavalaria, com 30 peças de artilharia.
Artigo 2 — Ao mesmo tempo uma divisão de tropas espanholas, consistindo em 10 000 homens, tomará posse da província de Entre Douro e Minho e da cidade do Porto; e outra divisão de 6 000 homens, também de tropas espanholas, tomará posse do Alentejo e do reino dos Algarves.
Artigo 3 — As tropas francesas serão sustentadas e mantidas por Espanha, e o seu pagamento providenciado por França, durante o tempo empregado na sua marcha por Espanha.”
Para qualquer português que conheça o Tratado de Fontainebleau e todo o backgroundgeopolítico anterior e posterior, soa estranho que se possa encarar uma retirada britânica dos assuntos europeus como uma vantagem, e muito mais declará-lo no decurso de uma visita oficial a Madrid.
Efetivamente, sem o apoio do Reino Unido teria sido impossível resistir às invasões que se seguiram, logo em dezembro de 1807, vulgarmente apelidadas de “invasões francesas”, mas que na realidade foram “invasões franco-espanholas”. O destino prega partidas e a Espanha haveria de pagar caro esta “traição peninsular” que consistiu na entrega de Portugal à França porque, pouco tempo depois, as tropas napoleónicas destinadas a invadir Portugal tomaram o poder em Madrid ao atravessar o território do país vizinho.
Em relação ao Brexit, o papel que cabe a Portugal é o de ponte de aproximação entre a UE e o Reino Unido. Não nos basta ser um honest broker, numa suposta posição equidistante entre os dois. Não basta avisar ambos os lados das consequências negativas de um hard Brexit. Devemos utilizar o nosso peso negocial para procurar viabilizar um soft Brexit junto dos parceiros europeus e, neste momento, o Plano Chequers é a única alternativa viável ao hard Brexitprevisto no SuperCanada Deal de Boris Johnson.
Não se trata de fazer um favor aos ingleses. Não se trata de agir em nome de uma aliança com 600 anos que nem sequer foi invocada. Devemos fazê-lo simplesmente porque o endurecimento negocial europeu que ocorreu na cimeira europeia de Salzburgo é prejudicial aos próprios interesses europeus (e consequentemente aos interesses portugueses). Sabemos bem onde leva a ostracização das potências marítimas europeias e esse não é um caminho aconselhável para a Europa.
Efetivamente, como refere Wolfganf Munchau, após Salzburg o cenário mais provável é um hard Brexit, com as seguintes consequências:
“If the UK were to crash out of the EU, I doubt its leaders would even sit down with the UK to negotiate a simple trade deal.
Co-operation on security policy would end. And as the economic systems diverge over time, the barriers to re-entry will increase. The possibility of rejoining the EU would be lost for a generation while agreeing to leave would keep the option of future membership open. That prospect alone should have some value both to the EU and to Remain supporters in the UK … In the meantime, we should all prepare for a no-deal Brexit. In the absence of further developments such as a change of political leadership, a general election in the UK or a change of position by EU leaders, we should consider it to be the single most probable scenario.”
Portugal, ao colar-se às posições continentais europeias, não está somente a renegar o seu passado de constante aliança com Inglaterra, está também a querer afirmar-se num terreno que lhe é desconhecido e onde corre o risco de ficar isolado…