Começo por referir que, ao contrário do Dr. Pedro Caetano, não sou epidemiologista nem tenho um diploma de Harvard na parede mas, em 2001, visitei o campus desta prestigiada Universidade, em Cambridge Massachusetts, e tomei lá um café.

Os meus diplomas são de origem mais modesta, mas trabalhei que nem um mouro para os obter, a saber, uma licenciatura em Biologia Marinha e Pescas da Universidade do Algarve, um mestrado em Modelação de Recursos Marinhos do Instituto Superior Técnico e um doutoramento em Pesca Comercial de Tubarões e Raias da Universidade de Aveiro. Estes três graus têm em comum, para além de tubarões, os modelos e os números. Os números são também a alma das aulas práticas de Biologia Pesqueira, Tecnologias de Pesca e Gestão de Recursos Marinhos que leciono na Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, localizada no campus 4 do Instituto Politécnico de Leiria, em Peniche. Adicionalmente, os números são ainda o coração da Flying Sharks, empresa que fundei em 2006 e os empresários, como eu, que têm de pagar ordenados, impostos e fornecedores todos os meses, estão penosamente cientes da importância dos números de que estou a falar.

Os factos relatados no artigo do Dr. Pedro Caetano não estão incorrectos, mas a forma como são apresentados e o tom punitivo que dirige aos líderes do país que deixou, estão. Acima de tudo porque esse tom inspira um clima de desconfiança por quem está ao leme numa altura em que precisamos exactamente do contrário. Temos uma taxa de letalidade de 50 pessoas por milhão de habitantes e esse valor é superior ao Brasil e, apenas 30% inferior ao dos Estados Unidos? Sim, temos. Mas o Brasil e os EUA têm 296 e 9885 testes por milhão de habitantes enquanto Portugal tem 20430, de acordo com a mesma fonte. Para além disso, o Brasil e EUA têm aproximadamente 210 e 330 milhões de habitantes, respectivamente, e Portugal tem 10.

O Dr. Pedro Caetano está absolutamente correcto quando refere que as estatísticas absolutas levantam sempre preocupações enganadoras, porque o número de habitantes num país dita que 500 óbitos numa população de 330 milhões tenha um impacto distinto daquele que tem num país de 10 milhões. Contudo, os números relativos, ou seja, 1,5 óbitos/milhão no primeiro caso e 50 óbitos/milhão no segundo — o que parece efectivamente indiciar que este segundo caso está à beira do abismo — escondem que, no primeiro caso, esses óbitos podem estar concentrados numa metrópole de 10 milhões que, incapaz de dar conta do problema, se vê obrigada a armazenar os cadáveres em camiões refrigerados contratados para o efeito, antes dos ditos serem enterrados em valas comuns porque nenhum parente os reclamou num prazo de quinze dias. Os mesmos números escondem que, no segundo caso, foi adoptada uma estratégia firme de protecção de um sistema de saúde — inexistente no primeiro caso — que tem mantido um número de internamentos (incluindo em Unidades de Cuidados Intensivos) estável, pontualmente descendente, como se pode ver no gráfico seguinte, que representa a situação portuguesa hoje (16 de abril), a partir dos relatórios de situação emitidos diariamente pela Direcção-Geral de Saúde.

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Num país de 10 milhões de habitantes, um número reduzido de óbitos parece sempre avassalador. Num país de 330 milhões de habitantes, um número avassalador de óbitos parece sempre reduzido.

Afastemo-nos agora, para adoptarmos uma visão mais abrangente. Este tipo de comparações tem eco na importância do rendimento da pesca, área que conheço bem há 25 anos. A pesca comercial é responsável por aproximadamente 1% do PIB nacional e, portanto, parece um fenómeno residual e facilmente descartável. Mas digam isso aos habitantes de Peniche, Sesimbra, Olhão e tantos outros portos, onde a pesca é a espinha dorsal da economia local. Seguindo este raciocínio, olhemos, por exemplo, para a China, que relata 3351 óbitos num universo de 1400 milhões de habitantes, mas uma análise mais cuidada revela que 84% dos casos infectados dizem respeito à província de Hubei, que tem 60 milhões de habitantes. Esse pequeno ajuste à nossa interpretação dos dados envolveu um salto de 2,4 óbitos/milhão para 56 óbitos/milhão, que são 23 vezes mais.

Recordemos ainda que estamos a basear todas estas conjecturas numa amostragem que, no caso português, é de 1.5% da população, já que foram conduzidos aproximadamente 210000 testes até agora, 12% dos quais positivos. No caso americano e brasileiro essa amostragem corresponde a 0.95% e 0.03% das populações, já que foram conduzidos aproximadamente 3.3 milhões e 62 mil testes em cada um, respectivamente, com taxas de infecção de 36% e 17%.

Assim é também nas pescas, em que temos de tentar avaliar o stock da sardinha, cavala e outras espécies, baseando-nos nas quantidades que são desembarcadas nas lotas ou capturadas em cruzeiros de investigação, sabendo de antemão que estes números correspondem a uma percentagem ínfima das populações selvagens. Quando tomam contacto com esta realidade, e as limitações dos modelos, é vulgar os alunos comentarem que “os modelos não servem para nada”, ao que tradicionalmente lhes respondo “Podem sempre desenvolver uns melhores” seguindo-se um silêncio desconfortável. Ou seja, estamos a tentar entender o que se passa num universo de milhões, a partir de uma amostragem várias ordens de magnitude abaixo. E, contudo, essa pequena amostragem permite-nos inferir conclusões como as representadas nos gráficos seguintes.

Comecemos com o número de casos infectados por milhão de habitantes, também citado pelo Dr. Pedro Caetano, apresentados aqui a partir do dia em que foram atingidos 10 casos por milhão de habitantes em cada país. No dia 14 de abril, antes de ontem, Portugal ocupava efectivamente uma posição desconfortável, com 1758 casos por milhão, valor praticamente idêntico ao americano (1767) e apenas ultrapassado por Espanha (3698), Bélgica (2715) e Itália (2687). Mas vejamos agora o número de mortes por milhão, valores também apresentados pelo Dr. Pedro Caetano, onde Portugal (com 55 mortes/milhão), apresenta valores bem distintos dos bem mais assustadores 387 óbitos/milhão de Espanha, 348 em Itália, 235 em França, 182 no Reino Unido, ou mesmo 91 da Suécia, país com uma população semelhante à portuguesa.

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Vejamos agora alguns valores não apresentados pelo Dr. Pedro Caetano como, por exemplo, a taxa de aumento diário de novos casos confirmados, cuja média móvel (de 7 dias) tenho vindo a calcular diariamente e que tem vindo a descer regularmente em todos os países, estando Portugal “a meio da tabela” com 4.8%, valor muito distante da Turquia (10.6%), Brasil (10.4%), Reino Unido (8.1%), Estados Unidos (7.5%), ou mesmo Suécia e Bélgica (6.2% e 5.8%, respectivamente).

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Estes cálculos permitiram-me ainda correlacionar esta mesma taxa de aumento diário de casos positivos com o número de testes efectuados em cada população, revelando o (quase) primeiro lugar de Portugal (com 20430 testes por milhão, logo atrás da Alemanha, com 20629) no universo de países que tenho vindo a acompanhar nos relatórios de situação diários da Organização Mundial de Saúde. Esta relação demonstra de forma clara que um maior número de testes está associado a taxas de variação diária mais reduzidas, como seria de esperar, sendo Portugal seguido de perto por Itália (18481 testes e 2.7% de aumento diário), Áustria (17410 testes e 1.9% de aumento diário) e Alemanha (20629 testes e 3.4% de aumento diário). Bem mais assustadores são os já citados casos da Turquia (5664 testes e 10.6% de aumento diário), Brasil (apenas 296 testes por milhão e 10.4% de aumento diário) e Reino Unido (6152 testes por milhão e 8.1% de aumento diário).

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Em suma, será Portugal um dos mais países mais perigosos do mundo no que diz respeito à infecção por Covid 19? Segundo o Dr. Pedro Caetano, sim. Mas eu gostaria de perguntar aos habitantes de Nova Iorque, Istambul, Londres e São Paulo onde é que preferiam estar, neste momento. Assumo que darão a mesma resposta que eu dei, já que Portugal é o país onde eu, a minha mulher e o nosso bebé de oito meses estamos e queremos continuar porque, embora alguns números possam ser alvo de visões mais pessimistas, sei que, por cá, temos camas e ventiladores disponíveis. Mais importante ainda, temos profissionais de saúde cuja dedicação e profissionalismo são elogiados por todo o planeta, nomeadamente pelo primeiro ministro britânico, que lhes queria fechar a porta e esteve perto de entrar para as estatísticas mais terminais desta crise.

Acima de tudo, embora valorize e estime a análise do Dr. Pedro Caetano, penso que esta esqueceu o detalhe porventura mais importante de todos e que é o facto de os portugueses estarem a cumprir escrupulosamente (quase todos, pelo menos) as regras do isolamento social. Para além disso, apesar de sermos um país pequeno, estamos a conseguir que esta tempestade passe por nós sem deixar o rasto de destruição que deixou – e vai deixar – em muitos outros países citados nestas linhas.

Por mim, não vou para fora e prefiro ficar cá dentro. De casa. E da minha terra.

#fiquememcasa e #vamostodosficarbem