A Helena Matos e o José Manuel Fernandes lançaram-me a pergunta, que tem surgido ocasionalmente nos últimos anos, e respondo aqui de forma mais sistemática. Portugal tem um problema de recrutamento e retenção de soldados semelhante à maioria dos países ocidentais (e não só, veja-se as dificuldades da Rússia nesta guerra, que pensou poder fazer só com voluntários). Isso resulta de razões conjunturais. Por exemplo, quando a economia cresce há mais alternativas de emprego. Mas também tem causas estruturais, como mudanças demográficas, nomeadamente o envelhecimento da população, bem como alterações nos costumes e expectativas de uma sociedade mais individualista e hedonista. Ser militar é um serviço, se for visto apenas como profissão e remuneração dificilmente será muito atrativa. Será que neste campo de atividade, como noutros, a solução passa por contratar estrangeiros, numa espécie de legião estrangeira lusitana?

Um pouco de história

Durante boa parte da história não havia uma ligação exclusiva entre nacionalidade e serviço nos exércitos. É verdade que existiu um vínculo entre serviço militar e cidadania nalgumas cidades-estados da Antiguidade, na Grécia ou em Roma. Mas tal não impediu que mesmo esses exércitos tivessem importantes contingentes de auxiliares e aliados constituídos por estrangeiros. O surgimento dos atuais Estados europeus a partir das monarquias romano-bárbaras da Alta Idade Média está intimamente ligada à guerra. Os Estados fizeram a guerra e a guerra fez os Estados. A segurança é a condição de base para uma comunidade política e económica de sucesso, e custa dinheiro, o que implica criar uma administração para cobrar impostos, pagar soldos e gerir a logística. No entanto, até à Revolução Francesa e à generalização do modelo do Estado-Nação liberal ao longo do século XIX pela Europa e Américas, existiam, sobretudo entre as unidades de primeira linha, as tropas mais profissionais, muitos estrangeiros. Um resquício atual dessa tradição é a Guarda Suíça do Vaticano. Mas até ao século XIX havia guardas suíças em vários Estados europeus. O exército de D. Sebastião em Alcácer-Quibir tinha milhares de espanhóis, italianos e tudescos – alemães, austríacos, suíços – e até alguns ingleses católicos, como o famoso Sir Thomas Stukeley que aí morreu. No final do século XVIII os britânicos combateram a independência norte-americana com um exército em que abundavam alemães – sobretudo do Hesse. E o rei Luís XVI teve na sua Guarda Suíça os seus derradeiros e mais leais defensores durante a Revolução Francesa. Só com o triunfo do liberalismo nacionalista, na Europa e no mundo, ao longo dos séculos XIX-XX, se generalizou a ideia de um serviço militar obrigatório de cidadãos. Mas continuaram a existir exceções. A própria França, pioneira da mobilização de cidadãos-soldados, criou, logo em 1831, uma Legião Estrangeira.

Alguns casos atuais

Embora nem sempre estes dados sejam de acesso fácil, estima-se que pelo menos 10 países admitam estrangeiros nas suas Forças Armadas. A França continua a ter a Legião Estrangeira, como uma unidade de elite com vocação expedicionária, atualmente com cerca de 8000 soldados. Mas esta unidade sempre admitiu voluntários com anterior experiência militar, independentemente da sua nacionalidade, o que significa que só cerca de metade dos legionários são estrangeiros. A Espanha seguiu esse modelo em 1920, criando os Tercios ou Legión para ser empregue na guerra de ocupação do norte de Marrocos, e que acabou por ter um notório protagonismo na Guerra Civil Espanhola. A unidade deixou de admitir estrangeiros durante décadas até uma revisão das regras para o conjunto das Forças Armadas espanholas, passando a partir de 2004 a recrutar cidadãos de países de língua oficial espanhola, residentes legais em Espanha e sem registo criminal. No caso do Reino Unido e da Índia continuam a existir unidades de Gurkhas nepaleses, uma herança do tempo do Raj, resultado de um acordo entre ambos os países e o Nepal aquando da independência do subcontinente em 1947. A Grã-Bretanha também permite o recrutamento de residentes legais permanentes com origem nos países do Commonwealth, estimando-se que não excedam 10% do total dos efetivos. Mesmo nos EUA, país de imigração por excelência, onde o recrutamento está aberto a todos os estrangeiros que sejam residentes legais permanentes, estima-se que não excedam os 65.000, 5% do efetivo total. Note-se que esta possibilidade não impediu que no último ano tenham ficado por preencher 15.000 vagas nas Forças Armadas norte-americanas, onde não falta bom equipamento e boas perspetivas de carreira. Em suma, o recrutamento de estrangeiros pode ajudar, mas não é uma panaceia para este problema.

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Uma possibilidade a explorar com os devidos cuidados

Em primeiro lugar devemos rejeitar a ideia de recrutar mercenários, sem critério, em qualquer parte do mundo. Teríamos indivíduos movidos apenas pelo lucro, sem possibilidade de controlar devidamente o seu percurso, criando todo o tipo de problemas de coesão, lealdade e disciplina. Por isso, como vimos, na maioria dos casos de recrutamento de estrangeiros há uma série de restrições: residentes legais no país sem cadastro e que dominam a língua para facilitar a sua integração.

Por outro lado, há que ter em conta que muitos Estados não permitem o recrutamento dos seus cidadãos por países terceiros. Um cuidado prévio fundamental se optássemos por seguir este modelo – residentes legais e de países lusófonos – seria garantir que isso não teria a oposição dos países de origem. Não faria sentido, para ter mais umas tropas, criar uma crise diplomática com parceiros importantes como Angola ou o Brasil, cujo acordo não pode ser dado como garantido. Mais, no caso de Portugal, ao contrário dos exemplos citados, a nossa Constituição diz no seu artigo 275 que “as Forças Armadas compõem-se exclusivamente de cidadãos portugueses”. Claro, a lei fundamental pode ser revista. Mas tal exige, e bem, um consenso alargado. Havendo uma revisão constitucional, considero que a questão pode ser equacionada com estes devidos cuidados. Mas devemos olhar para esta possibilidade como uma de várias possíveis respostas para atenuar um problema que não tem soluções fáceis.