Será que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa é demasiado popular? Ou o problema estará no snobismo, quiçá no ciúme de certas elites que não toleram um estilo mais descontraído na presidência e que ele concentre o seu afeto no bom povo português, que tanto elogiou no seu discurso do 10 de junho? Qual é o grande problema de termos um Presidente de que povo parece gostar e que parece gostar de povo? Isso não será positivo em tempos de regresso da guerra de conquista à Europa?

Um novo Presidente-Rei?

A propósito da popularidade carismática de Marcelo e do seu discurso de 10 de junho em Braga, Pedro Cruz avançou com uma interessante comparação com Sidónio Pais, o Presidente-Rei, demasiado tentadora para um historiador, como eu, não pegar nela. Para uma comparação ser interessante, note-se, ela não tem de resultar na conclusão de que os comparados são iguais, as diferenças podem ser tão reveladoras como as semelhanças.

Sidónio Pais (1872-1918) foi o primeiro chefe de estado português a ser eleito diretamente pelo povo. Durante a Primeira República a escolha de Presidente da República era, deliberadamente, uma eleição de elites, tinha lugar no parlamento e envolvia apenas poucas centenas de parlamentares. Será, então, Marcelo um novo Sidónio? Não, no sentido de que o major Sidónio Pais tomou o poder pela força, no golpe militar de dezembro de 1917. Só depois disso organizou as primeiras eleições diretas para a chefia do Estado, em maio de 1918, e nelas não teve oposição. E se Sidónio não acabou com todos os partidos, como o faria Salazar, apenas permitiu um pluralismo muito limitado e concentrou poderes como presidente que era também chefe do governo. O presidencialismo sidonista, a República Nova, envelheceu rapidamente e acabou mal, não chegando a durar dois anos. Este regime, que podemos ver como precursor das democracias iliberais tão apreciadas pelos líderes populistas atuais, morreu na prática com o assassinato de Sidónio Pais, em dezembro de 1918, na estação do Rossio. O seu multitudinário enterro foi visto como mais uma prova da sua popularidade e carisma. A comparação de Marcelo com Sidónio justifica-se, portanto, sobretudo pelo lado do carisma e da popularidade. Mas há grandes diferenças entre Sidónio e Marcelo, como as há entre o Portugal de 1918 e o de 2022. Se considerarmos que vivemos num regime democrático consolidado será reduzido o risco de um qualquer populismo de tipo Sidonismo. E Marcelo não parece ter o perfil ou o desejo de se tornar no homem forte de um Neo-Marcelismo populista, afetos e governação não ligam bem.

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O que deve o Presidente fazer num mundo mais perigoso?

Fim da história? Não. Sidónio foi uma resposta populista e autoritária ao impacto terrível da Primeira Guerra Mundial num regime republicano jovem, com legitimidade problemática, e numa economia muito frágil. Um escudo de 1910 valia em 1926 apenas poucos centavos, tinha desvalorizado 96% por força da inflação que explodiu com a guerra. Esta foi uma guerra em que Portugal participou diretamente, enviando dezenas de milhares de tropas para Angola, Moçambique e para a Frente Ocidental, em França, onde as baixas foram enormes. Só na chamada Batalha de La Lys, em Abril de 1918, em poucos dias foram mortos ou desaparecerem mais de 2000 soldados, foram feridos mais 4600, mais de 7000 foram feitos prisioneiros.

A Europa vive novamente uma guerra de conquista em grande escala. O envolvimento de Portugal é, felizmente, mais indireto e limitado: enviámos armas e ajuda humanitária para a Ucrânia e enviámos tropas para a Roménia. Mas o impacto económico da guerra está a ser muito negativo e pode ser prolongado. Mesmo que hoje tenhamos uma solidariedade europeia e um Estado social que não existiam há cem anos atrás, este choque externo criará problemas sérios a uma economia e a um Estado fortemente endividados. Devemos preparar-nos para um Mundo entre uma Segunda Guerra Fria e uma Terceira Guerra Mundial. O que deve fazer Marcelo?

O facto de Marcelo ser muito popular não é em si mesmo uma ameaça à estabilidade das instituições democráticas que é sua missão constitucional defender, ou às funções complementares de aconselhamento discreto e defesa pública das grandes prioridades nacionais. Seria uma ameaça à democracia liberal se fizesse como Trump, Erdogan, Bolsonaro ou Sidónio e procurasse dividir a cidadania em bons e maus, se apelasse ao “verdadeiro” povo contra as instituições democráticas para reforçar o seu poder. Ora o seu discurso do 10 de junho em Braga até foi, pelo contrário, um discurso de unidade.

Braga não dá resposta

Qual é, então, o problema? Se o argumento central de Marcelo no seu discurso de Braga é que o povo português é ótimo e sempre o foi ao longo da história, que conclusão politicamente útil devemos tirar? Sempre fomos e seremos espetaculares, portanto está tudo bem e vai ficar tudo bem? Mesmo para um discurso que, legitimamente, não queria dar recados políticos divisivos, pareceu-me demasiado vago e demasiado otimista em tempos difíceis que exigem clareza e coragem. Foi um discurso tão vago que até abriu a porta a que um verdadeiro populista iliberal viesse dizer: “concordo com o Presidente, o povo português é ótimo e o grande problema são as elites globalistas e as instituições democráticas que nos limitam”. Claro que o próprio Marcelo não recorreu a estes argumentos populistas e até aludiu a aspetos importantes para lidarmos com um mundo em guerra, como a importância das Forças Armadas e o acolhimento de migrantes e refugiados.

A grande questão é: estará Marcelo disposto a usar a sua popularidade para defender sacrifícios e reformas difíceis em tempos difíceis? O Presidente está disposto a gastar algum do forte capital político acumulado, ou tentará, acima de tudo, manter a sua popularidade? A defesa pelo Comandante-Chefe das Forças Armadas do reforço do investimento nacional em defesa para chegarmos mais rapidamente aos 2% do PIB e, destes, 20% em capacidades, como nos comprometemos no seio da NATO, que estou longe de considerar uma opção facilmente popular, será um dos testes para respondermos a esta pergunta.