Desde o início da invasão russa da Ucrânia que se multiplicam as comparações com Neville Chamberlain, o primeiro-ministro britânico nos anos que precederam a segunda guerra mundial e que liderou uma política de apaziguamento com os nazis alemães. Essas comparações, ou, para ser mais rigoroso, acusações, com que são diariamente brindadas as lideranças europeias, são resultado da sua hesitação em confrontar Vladimir Putin. Acompanho uma parte dessas críticas, embora na realidade a ajuda de muitos destes países à Ucrânia seja mais considerável do que algum do discurso público faria crer.

Neville Chamberlain é regularmente apresentado como o vilão de uma história relativamente simples, especialmente quando confrontado com a actuação do seu sucessor Winston Churchill. Enquanto Herr Hitler renunciava ao Tratado de Versailles e ia subjugando sucessivos territórios, da remilitarização da Renânia, ao Anschluss da Áustria, do Sudetenland na Checoslováquia até Memel na Lituânia, Chamberlain apaziguava, tentando esquivar-se a uma guerra que parecia cada vez mais inevitável. Para a História fica a traição maior, o tratado de Munique, onde Chamberlain oferece a região checoslovaca de maioria étnica alemã dos Sudetos ao Reich, sem sequer ouvir o parecer da própria Checoslováquia. No dia seguinte, a 30 de setembro de 1938, aterra em Inglaterra onde é recebido como um herói. Exibe vigorosamente o acordo assinado enquanto proclama triunfantemente o discurso que ficaria conhecido como peace for our time!

Entretanto, Churchill, a velha raposa que há muito tinha perdido quaisquer ilusões sobre o que realmente significava o regime nazi, apontava a necessidade de o Império se armar e preparar para o pior e de não se confiar na palavra do Führer. Alguns meses depois do início da segunda guerra mundial, mais precisamente quando a Alemanha inicia a invasão dos Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e França, Winston Churchill ascende ao cargo de Primeiro-Ministro e com uma retórica prodigiosa, uma energia inesgotável e uma coragem rara leva o Reino Unido e os seus aliados até à vitória total em 1945. Isto só foi conseguido com a contribuição fulcral dos colossos URSS e Estados Unidos, que em 1941 seriam atacados pelas potências do Eixo e arrastados contra a sua vontade para o conflito.

Antes de tentar desmontar – pelo menos parcialmente – esta narrativa, gostaria de sublinhar que admiro muitíssimo Winston Churchill. Está, na minha opinião, no topo da lista das personalidades do século XX a quem temos que agradecer a liberdade e a democracia de que beneficiamos hoje. Um homem carregado de enormes virtudes e espectaculares defeitos, já completamente fora do seu tempo nos anos 30 do século passado, Churchill foi a pessoa certa no lugar certo e uma das poucas no planeta que teve o poder de interromper a guerra, depois de a derrota da França deixar praticamente toda a Europa escravizada debaixo das garras de Hitler e Stalin. O líder alemão não tinha interesse nem desejo em continuar a guerra contra o que considerava ser um povo superior e publicamente ofereceu a possibilidade de paz a Churchill, no seu famoso discurso de 19 de julho de 1940. Churchill, contra a vontade de muitos dos seus conselheiros e da pressão exercida pelo embaixador americano Joseph Kennedy, recusou terminantemente qualquer paz com a Alemanha.

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A minha defesa de Chamberlain não deve por isso ser vista por oposição a Churchill, mas como dois verdadeiros líderes que se complementaram e a quem muito devemos a liberdade e paz na Europa.

Chamberlain tudo fez para evitar que uma repetição da grande guerra pudesse devastar novamente o continente. A sua geração assistira à guerra de 1914-18 e a uma escalada de destruição e carnificina nunca antes vista. Mas não obstante a sua política de appeasement, não era ingénuo e foi preparando o seu país para o cenário inimaginável. A oratória de Winston foi certamente impressionante, mas não teria servido de muito se o governo que o precedeu não lhe tivesse preparado o caminho, dando-lhe as ferramentas, quer políticas quer militares, necessárias para a sobrevivência do Reino Unido.

Não foi certamente a 10 de maio de 1940, quando ascende ao lugar de primeiro-ministro, que Churchill desenhou, testou ou produziu os aviões de combate que poucos meses depois lhe dariam a vitória na Batalha de Inglaterra. Quer o Supermarine Spitfire, um avião tão moderno e eficaz quanto o melhor que os alemães tinham para apresentar, quer o Hawker Hurricane, um caça mais simples e barato e que foi o verdadeiro workhorse da batalha, estavam a ser preparados desde meados da década de 30. O mesmo pode ser dito do inigualável motor Rolls-Royce Merlin, que foi usado em ambas as aeronaves. As “fábricas-sombra” que foram construídas nos anos que precederam a guerra permitiram aumentar decisivamente a capacidade industrial militar do país. Foi numa dessas fábricas, em Castle Bromwich, que foram produzidos mais de 60% dos cerca de 20 mil Spitfires construídos durante a guerra. Sobre a importância destes caças e dos seus pilotos, passo a palavra ao próprio Churchill: “Never in the field of human conflict was so much owed by so many to so few”. Estas palavras só foram possíveis porque a capacidade industrial, os desenhos técnicos, o treino dos pilotos e toda a logística estavam já prontos no dia em Churchill chegou ao poder.

Contudo, esta batalha não foi ganha apenas na base da qualidade técnica dos seus aviões, da coragem dos seus pilotos e da mestria da sua liderança política. O sul de Inglaterra tinha sido preparado com antecedência para esta eventualidade, com a construção do sistema Dowding. Este sistema, o primeiro em todo o mundo, foi desenhado e implementado por Hugh Dowding e consistia num conjunto de radares, sistemas de comunicação, salas de filtragem e comando, apoiados pelo Royal Observer Corps (cerca de trinta mil voluntários altamente treinados, espalhados pelo sul de Inglaterra com pouco mais do que um livro de reconhecimento de aviões, uns binóculos e um telefone). Este sistema, e todo o trabalho feito previamente, foi crucial para a vantagem mantida durante toda a batalha, como reconhecido por Churchill: “All the ascendancy of the Hurricanes and Spitfires would have been fruitless but for this system which had been devised and built before the war. It had been shaped and refined in constant action, and all was now fused together into a most elaborate instrument of war, the like of which existed nowhere in the world.”

Também na vertente política, uma parte do sucesso de Winston deve ser creditado a quem o precedeu. No dia 1 de setembro de 1939, horas depois do início da invasão da Polónia, Chamberlain chama Churchill a Downing Street, onde o convida a fazer parte do conselho de guerra, como descreve o próprio nas suas memórias. Dias depois desafia-o a liderar a poderosa armada britânica, tornando-se First Lord of the Admiralty, cargo que já tinha ocupado durante a grande guerra.

Em maio de 1940 não existiram eleições gerais no Reino Unido. Churchill não chega ao poder como resultado de uma vontade directa e explícita dos britânicos. Torna-se primeiro-ministro porque é proposto pelo próprio Chamberlain ao parlamento e ao monarca. Neville Chamberlain não só coloca a sua considerável influência política para conseguir o apoio dos parlamentares à nova solução, como – pela sua demissão do cargo – permite que o novo governo seja uma coligação entre conservadores, trabalhistas e liberais. O seu discurso de demissão é um exemplo de um estadista que coloca o interesse do país acima de si próprio e de qualquer sentimento de injustiça que pudesse estar a sentir. Com uma humildade rara, aceita a proposta de Churchill para servir no conselho de guerra onde viria a ser instrumental no apoio a Churchill quando parte do governo pretendia considerar a proposta de paz dos nazis. Sobre a actuação de Chamberlain como Lord President of the Council, o futuro primeiro-ministro trabalhista Clement Atlee diria mais tardefree from any of the rancour he might have felt against us. He worked very hard and well: a good chairman, a good committeeman, always very businesslike”. Poucos meses passados, na sequência da morte por cancro de Chamberlain, Churchill diria em privado: “Whatever shall I do without poor Neville? I was relying on him to look after the Home Front for me.”

Não fora Chamberlain, Churchill poderia ter sido uma espécie de Medina Carreira, alguém que tivera razão, mas poucos o ouviram e que acabou por não ter qualquer impacto relevante no seu país. Seria certamente mais lembrado pelas suas responsabilidades no terrível desastre militar de Gallipoli na primeira guerra, do que no discernimento sobre o perigo nazi.

Gostaria eu que fôssemos hoje liderados por gente do calibre de Neville Chamberlain, na Europa, mas especialmente em Portugal. Aprender com os erros, ter a coragem de tomar decisões, e actuar de forma determinada para que não se repitam, é o exacto oposto da liderança que temos tido na nossa pátria.

Depois dos fogos de 2017, dos roubos de Tancos, do desastre no sistema de saúde durante a pandemia, das catástrofes financeiras e orçamentais, Portugal e as suas sofríveis lideranças nunca aprendem nada. Esperam que os problemas passem e rezam para que não voltem a acontecer. E a culpa será sempre de factores exógenos ou de alguém que num passado mais ou menos remoto possa servir como bode expiatório. Não temos ali ninguém com a coragem, determinação e visão de Churchill. Nem ninguém capaz de trabalhar discretamente e decisivamente para que não se repitam os erros do passado, como Chamberlain.

Agora rezemos para que os incêndios não matem ninguém. Que ninguém se lembre de adoecer. Que os cidadãos não usem transportes públicos porque eles não aguentam. E que também não utilizem veículos próprios porque não há parqueamento nem capacidade rodoviária. Que não exista nenhuma emergência financeira, orçamental, económica, climática, militar ou outra qualquer. Rezemos. E se vamos continuar a votar nos mesmos, rezemos ainda mais.

E paremos de usar Chamberlain como insulto. Quem nos dera ter um.