1. Nestas últimas semanas, vieram mais animadamente ao noticiário da comunicação social, e ao debate público e parlamentar, duas nossas velhas questões de democracia e de direitos humanos, porque os partidos da geringonça intensificaram o seu “forcing” totalitário a ponto de despertarem finalmente maior atenção cívica democrática. A questão do monopólio estatal na Lei de bases da saúde, e a questão do evidente endoutrinamento da ideologia de género, sob pretexto de educação para cidadania, nas escolas de crianças e jovens, com desprezo dos direitos constitucionais dos pais de escolherem a educação dos filhos.
As duas questões estão ligadas pelo mesmo desígnio de totalitarismo de Estado, que acha que pode e deve substituir a Sociedade Civil. E para maior prova da sua cegueira ideológica, nem se dá conta de que defende processos opostos, segundo lhe convém. Assim, no sistema da saúde pública, defende a exclusão, ou ao menos a supletividade dos privados. Mas na educação, defende a participação activíssima dos privados, na endoutrinação ideológica escolar. Portanto: não às parcerias privadas na saúde, mesmo com concurso. E sim às parcerias privadas na educação, mesmo sem concurso.
2. Aliás, se formos examinar com rigor a argumentação dos que advogam tais autoritarismos de Estado, eles nunca invocam nem os artigos da Declaração Universal dos direitos do homem, nem os da Constituição Portuguesa, nem os direitos humanos aí consagrados. E nuns casos batem sempre na tecla do (bom) Estado contra os (maus) privados; enquanto que noutros casos preferem a tecla da igualdade. Como se, num caso, a democracia pluralista desse uma superioridade ao Estado; e, noutro caso, a educação escolar pública impusesse uma igualitarização ideológica dos cidadãos a cargo do Governo. Nos tempos antigos, a omnipotência do poder político escolhia como sua razão a ideia de ordem. Que, obviamente, não é uma ideia errada, mas podia ser utilizada arbitrariamente. Hoje, a omnipotência do Governo escolhe a ideia de igualdade, que não é errada, mas também pode ser utilizada arbitrariamente para igualitarizar os cidadãos, sob o poder político providência e educador. Como George Orwell bem caricaturou, quando revelou que, entre os cidadãos iguais, há uns cidadãos mais iguais do que os outros, e esses são os que igualitarizam os demais.
3. Há dias, lia-se na comunicação social: «Sobre a possibilidade de o Presidente da República vetar uma nova Lei de Bases da Saúde que preveja o fim das PPPs, noticiada pelo Expresso, a líder do BE disse preferir aguardar pela decisão de Marcelo Rebelo de Sousa quando o diploma sair do Parlamento. “Parecer-me-ia estranho um veto político do Presidente da República baseado em defender os hospitais privados deste país. A Assembleia da República tem toda a capacidade para fazer PPPs ou acabar com elas”, defendeu».
4. Defender os hospitais privados?! Mas, ao que se sabe, o Presidente da República, o que defende é que a lei de bases tenha um consenso parlamentar o mais alagado possível, para ser estável. Está na sua função de Presidente de todos os Portugueses; e na função de apoiar a estabilidade institucional política. E se defender as liberdades de celebração de contratos de cooperação entre os Governos e os privados, apenas defende as liberdades, e tanto defende a liberdade dos privados como defende a liberdade dos Governos. Será que os privados não merecem liberdade de iniciativa e de colaboração nas políticas públicas, por serem inimigos do Povo? Esta ideia tem uma história horrível.
E quando alguém diz, como disse Catarina Martins: “A Assembleia da República (AR) tem toda a capacidade para fazer PPPs ou acabar com elas” — pergunta-se: o que quererá dizer? Que a actual AR tem “capacidade” para, a bel-prazer da sua actual (e transitória) maioria partidária parlamentar, permitir ou proibir para sempre as PPPs na área da saúde pública? Condicionando posteriores legislaturas? Mas uma tal ideia seria ridícula. Qualquer pessoa vê que, em cada legislatura, se o governo da respectiva maioria parlamentar quiser celebrar PPPs, e se uma lei anterior o impedir, então a sua maioria parlamentar muda a lei e pronto. Tal como agora o BE quer fazer — mudar a lei —, amanhã fará um partido político em iguais circunstâncias de outra maioria parlamentar: mudará a lei. Isto é evidente.
5. Mas, entretanto, Catarina Martins fez esta outra declaração, segundo também noticiou a comunicação social: «É por isso que lutamos, é por isso que temos feito este debate, é por isso que não cedemos. Não cedemos e o problema não são três PPP, o problema é saber se nós queremos deixar o caminho aberto para um qualquer governo futuro que, não estando condicionado à esquerda, decida entregar a generalidade dos hospitais à gestão privada ou se, pelo contrário, nesta legislatura respondemos à expectativa das pessoas de salvar o Serviço Nacional de Saúde».
6. Afinal, parece que Catarina Martins pensa (ou quer que nós pensemos?) que esta lei vai limitar «um qualquer governo futuro … não … condicionado à esquerda» — ou seja, um governo com maioria parlamentar de direita. [Em aparte: este conceito de um governo “condicionado à esquerda” é um magnífico acto falhado!…]. Catarina Martins pensa (ou quer que nós pensemos) que esta lei não vai poder ser alterada por uma maioria parlamentar de direita. Ora esta!… A gente fica sem saber se Catarina Martins está a mandar “fake news” aos cidadãos, ou se a questão é a de não ter tido aproveitamento na disciplina da educação para a cidadania.
7. E poderia o PS concordar? Confirmando que, durante anos e anos, andou erradamente a fazer PPPs? Se é que não foi principalmente o PS que as celebrizou, na nossa prática política?
E não seria bem melhor, para tirar conclusões, que em vez de discursos ideológicos abstractos sobre o interesse público, se preferisse avaliar objectivamente e em concreto o resultado das PPPs, como no caso recente da avaliação da PPP no Hospital de Braga? Que deu uma avaliação muito positiva, não apenas de boa gestão económica, mas também de qualidade dos serviços prestados e de satisfação dos utentes? Que é assim, em concreto, que se verifica da satisfação do interesse público.
8. Mas porque é que o Estado não estabelece preços por acto médico, ou por acto docente, e depois aceita competir com os privados? Porque sabe que vai perder na competição. Quando desvia esta questão, dizendo que os privados têm lucro na educação e na saúde, o que é que isso quer dizer? Se se estabelecerem os mesmos preços para os mesmos serviços com a mesma qualidade, então o lucro dos privados só pode ser igual ao desperdício na gestão pública. Para uma igualdade de serviços, é preferível ter desperdício na gestão pública do que lucro na gestão privada? Os partidos do centralismo de Estado criticam (em absoluto) o lucro dos privados, e não querem (em absoluto) saber do desperdício da gestão pública? É como na União Soviética, que em nome da dogmática boa qualidade estatal, se proibia a medição quantitativa das actividades estatais.
9. Mas parece que António Costa pensa ou pensou da mesma maneira que Catarina Martins. Ele, que é jurista. Porque, se não pensasse na mesma, para que é que teria deixado correr esta farsa? Este “suspense” sobre se “definitivamente” concorda ou não com o BE, na proibição legal das PPPs?
Se o actual Governo socialista não quer fazer novas PPPs, precisa de se proibir a si próprio com uma lei? Se não é só para isso, então ele também pensa que vai “condicionar à esquerda” futuros governos de direita? Mas que coisa tão ridícula, transformar uma simples e livre opção de governo numa dramática mas falsa reforma do SNS para a eternidade! Enfim, parece que finalmente António Costa recua, «chocando» terrivelmente o BE. Mas, ao que se noticia, não por opinião própria, e sim porque não conseguiu acordo suficiente no seu grupo parlamentar. E em vez de proibir absolutamente, prefere apenas reduzir a participação dos privados a uma função supletiva da iniciativa de Estado. Estabelecer que os privados só podem ser convencionados supletivamente é voltar à tese da supletividade da escola privada na Constituição de 1976. Que foi um erro do PS, que depois o PS teve de corrigir. E agora, essa supletividade é ainda mais questionável, porque temos o princípio da subsidiariedade do Estado consagrado no art. 6.º da Constituição. É urgente abrir uma profunda discussão sobre aplicação deste princípio constitucional, que tem sido indesculpavelmente esquecido até pelos partidos democráticos.
10. Quanto aos escândalos de abusos de endoutrinamento moral de crianças e jovens, nas escolas, sob o patrocínio ideológico dos responsáveis do Ministério da Educação (que devem respeitar a proibição constitucional de o Estado programar a educação e a cultura, bem como a prioridade constitucional dos direitos de educação dos pais), a questão foi vivamente levantada e criticada pelo deputado Bruno Vitorino numa sessão de Comissão Parlamentar. E, vergonha das vergonhas, os responsáveis ministeriais, em vez de darem sérias e ponderadas justificações constitucionais e legais da sua política a um deputado, como a Constituição impõe aos membros do Governo, riram-se com ares de superioridade, insinuaram depreciações e tiveram jeitos de ridicularizar a opinião do deputado, citando opiniões de uns quaisquer que não passam de opiniões de uns quaisquer, como se essas opiniões esmagassem. A ponto de o deputado Bruno Vitorino ter invocado e usado do seu direito de defesa da honra. Já vamos aqui, na arrogância ideológica do Governo! Muito mau sinal! E logo no Ministério da Educação (para a cidadania)? Que educação?
11. Recapitulando e em conclusão: para o BE — e parece que também para o PS da geringonça (porque há um outro PS) —, as parcerias privadas com o Estado no ensino da disciplina para a Educação da Cidadania são muito boas. Porque calham com a sua ideologia. E nem sequer se podem criticar, porque quem as criticar, é acusado perante a CIG. Mas, e por definição, na gestão hospitalar são más, porque não calham com a sua ideologia. Está-se mesmo a ver a razão ideológica da diferença, não está? É uma descarada partidarização ideológica dos serviços públicos.
12. É gravíssimo que tudo isto não tenha vindo a ser tratado pelos partidos da geringonça como questões constitucionais seriamente colocadas. E venha sendo como uma campanha de endoutrinação ideológica, tanto dos alunos das escolas como dos cidadãos em geral. Os outros partidos democráticos, que defendem a observância da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, bem como a Constituição da República Portuguesa, deveriam ser mais activos não só parlamentarmente, mas também na opinião pública. Em democracia pluralista, a “esfera pública” tem de ser activamente animada por todas as opiniões, para não ser hegemonizada apenas por algumas, por falta de comparência das outras. Na conjuntura portuguesa, muitos sentem que há um desequilíbrio de contribuições partidárias no debate político público. As forças partidárias em causa não se inquietam com esse sentimento na opinião pública?