Tanto a percepção individual não especializada, derivada da experiência quotidiana, como a plêiade de pesquisas e estudos científicos levados a cabo na área das neurociências ao longo dos anos atestam que as manifestações culturais e, em particular, as de natureza artística (quer numa perspectiva (co-)criativa e participativa, quer na sua dimensão de fruição) revelam-se benéficas para a saúde mental e física dos indivíduos. Já no plano mais estritamente clínico, e ancoradas em diferentes modelos e metodologias, são inúmeras e heterogéneas as práticas terapêuticas e os projectos interdisciplinares e colaborativos já implementados e/ou em curso em muitos países, que interseccionam harmoniosa e eficazmente as artes com a saúde, mormente a nível mental.
Noutro prisma, há uma convicção cada vez mais generalizada da correlação entre os determinantes sociais da saúde (estabilidade económica; educação; comunidade e contexto social; sistema de saúde; e vizinhança e ambiente envolvente) e a qualidade de vida e bem-estar das populações. Esta associação reveste-se de particular acuidade na saúde mental e em questões como sentimentos de solidão e medo, problemas emocionais diversos, quadros de ansiedade e depressão, insatisfação profissional ou burnout. Alguns autores, como Muir Gray e Anant Jani (Universidade de Oxford), preconizam mesmo que os factores de índole social são responsáveis por cerca de 70% dos outcomes de saúde, sendo que vários estudos estimam que aproximadamente 20% dos utentes procuram o médico de família por motivos primariamente de âmbito social e cuja intervenção mais adequada não passará por uma atitude médica ou farmacológica no seu sentido convencional.
Acresce que nos últimos anos assistiu-se, a nível mundial, a um crescimento exponencial do número de pessoas com doença mental, prevendo-se que em 2030 esta área – ainda muito envolta em estigma, silêncio e invisibilidade (a tão glosada metáfora do iceberg) – constitua mesmo, segundo a OMS, uma das principais causas de morte. Em Portugal, as patologias mentais atingem um terço da população.
Existem, assim, diferentes modalidades de integração de conteúdos culturais e artísticos no universo das terapias para a saúde mental, não se resumindo ou limitando esta convergência a uma única visão conceptual, modelo e modo de implementação. É neste âmbito que surge a denominada “prescrição social” (que, em geral, inclui uma significativa componente cultural), com origem no Reino Unido há mais de vinte anos e já amplamente disseminada por várias geografias.
Esta opção prescritiva consiste na implementação de uma abordagem-circuito, já testada e normalizada em termos metodológicos, que se inicia nos cuidados primários de saúde e que prossegue, através de propostas de referenciação dos utentes, para link-workers (técnicos de serviço social ou outros mediadores) devidamente capacitados para a avaliação dos pacientes e conhecedores das suas realidades comunitárias. Estes profissionais, por sua vez, dinamizam entrevistas com os utentes, identificando os diversos factores facilitadores do seu envolvimento com as artes (a nível de capacidade, oportunidade e motivação) e encaminham-nos para o contacto com os agentes culturais e, assim, para um conjunto estruturado de actividades, consideradas potencialmente reabilitadoras, a experienciar durante um período temporalmente adequado. Segue-se, numa lógica de acompanhamento e monitorização, a partilha da informação, pelos utentes, sobre a prescrição cultural com o médico de família e outros actores.
Esta modalidade alternativa de terapia pode englobar diversas tipologias de actividades (“receptivas e/ou observacionais” e de “participação activa”) constantes das agendas culturais, abarcando música, teatro, dança, leitura e escrita criativa, narração oral, artes plásticas e não só, isto de acordo com os perfis e necessidades dos utentes, empoderando-os também, por esta via, para um maior auto-cuidado e uma melhor gestão do seu bem-estar e qualidade de vida e doença.
Em Portugal, a prescrição social surge, de um modo assumido e organizado, em 2018 no seio do agrupamento dos centros de saúde de Lisboa Central, mais concretamente na Unidade de Saúde Familiar da Baixa, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-NOVA). Esta instituição académica, juntamente com o ACES Lisboa Central – USF da Baixa e USF Almirante, lançou depois o NOVA Grupo de Investigação em Prescrição Social (NOVA GIPS), no sentido de, através da investigação multidisciplinar e da cooperação intersectorial, estimular, estruturar e muscular a intervenção dos profissionais (da implementação à avaliação) em torno da prescrição social, construindo parcerias institucionais alargadas e fixando novas âncoras no território ao nível de projectos-piloto e boas práticas, com o fito de arquitectar uma rede nacional de prescrição social.
É de destacar ainda, pelo seu pioneirismo fora das principais metrópoles, e igualmente inspirado em modelos europeus, o projecto de prescrição cultural a decorrer, até final deste ano, em oito municípios do Alentejo Central (Alandroal, Arraiolos, Borba, Évora, Estremoz, Montemor-o-Novo, Portel e Redondo). Trata-se de um trabalho continuado e estruturado, conduzido pela equipa da associação cultural Pó de Vir a Ser (sediada em Évora), e que conta com financiamento da Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central através do programa “Transforma”, sendo ainda apoiado pela Administração Regional de Saúde e seus centros de saúde. Atente-se no rigoroso e ilustrativo manual de apoio sobre prescrição cultural produzido em 2022 neste âmbito, o qual contém diversos capítulos com informação útil e actualizada, quer numa óptica mais teórica quer na sua aplicação no terreno.
Uma nota igualmente, agora noutra vertente de intervenção, para a P28/Manicómio, que aposta na promoção de trabalhos de artistas com experiência de doença mental, através de um espaço de criação, hub social e galeria de Arte Bruta, num cowork regular juntando artistas-doentes a outros criativos, e incluindo ainda a primeira agência de design e comunicação com criativos com doença mental. A estas valências culturais desta estrutura junta-se o projecto solidário “Consultas sem paredes”, realizado em contextos não convencionais e em modo site specific (como no MAAT, em Lisboa), bem como o primeiro co-living de saúde mental em Portugal, situado em Cascais, que inclui uma equipa multidisciplinar de profissionais e um conjunto de actividades terapêuticas, artísticas e desportivas que potenciam o bem-estar e uma vivência em comunidade.
Também desde 2018, o Festival Mental, dinamizado pela associação Safe Space Portugal, explora diálogos e intersecções criativas entre as artes (cinema, artes plásticas, música, teatro, performance, etc.), o pensamento/reflexão crítica, o engagement e a saúde mental. Em 2020, a própria Direcção-Geral das Artes lançaria, de modo inédito, um programa de apoio em parceria sobre arte e saúde mental, tendo financiado, durante dois anos, vários projectos artísticos independentes disseminados pelo território nacional.
A Sociedade Portuguesa de Arte-Terapia (criada em 1997), por seu lado, tem vindo a aplicar e difundir novas abordagens terapêuticas no tratamento de patologias mentais, por um lado assentes num modelo triangular paciente-terapeuta-criação artística e, por outro, na promoção da arte-psicoterapia nas suas várias modalidades. Note-se que a arte-terapia carece de uma regulação profissional ainda não existente em Portugal (há uma petição pública em circulação), visando uma maior valorização e reconhecimento desta profissão.
A declarada incorporação da cultura e das artes em estratégias organizacionais de prevenção sobre saúde mental em contextos laborais (públicos e privados) afigura-se igualmente essencial, mais uma vez numa vertente interdisciplinar e colaborativa, sobretudo nestas dimensões específicas: no desenvolvimento de planos de acção sobre saúde mental para equipas; no envolvimento das lideranças na eliminação do estigma ao nível das culturas empresariais; na capacitação e na orientação dos colaboradores para ferramentas de apoio; e na medição regular do impacto interno das iniciativas adoptadas.
Justifica-se ainda, numa lógica preventiva, um alargamento estratégico da convergência entre artes e saúde mental aos meios educativos formais e não formais – estão a surgir, e bem, programas de intervenção neste sentido, mas para já, mais centrados no ensino superior público e privado –, até para o desenvolvimento junto de crianças e jovens de uma atempada literacia neste domínio, enfatizando, assim, a importância do auto-cuidado e bem-estar. Recorde-se, aliás, que 50% das doenças mentais instalam-se até aos 14 anos e 75% até aos 24 anos.
São fundamentais estratégias e políticas públicas para a saúde mental que, para lá do seu escopo sectorial, assumam – através da articulação entre as áreas da saúde, cultura, trabalho/solidariedade, educação e ciência – uma visão efectivamente transversal e integrada para esta temática, convocando assim domínios de intervenção convergentes em prol de objectivos comuns. Nesta linha, o eixo cultura-artes-criatividade pode constituir uma legítima e relevante ferramenta terapêutica (mais preponderante ou mais complementar, conforme os casos), entre outras, para o ecossistema da saúde pública e, em particular, no contexto da saúde mental.
Paulo Pires é gestor e programador cultural, com um percurso de mais de vinte anos nas áreas da cultura, artes e criatividade, desempenhando diversas funções nas administrações local, regional e central. É assessor cultural na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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