1. Há democracias maduras e democracias frágeis e não é a idade das mesmas que determina a sua maturidade é a qualidade das instituições. A nossa está a meio caminho das duas. Uma democracia madura é aquela em que verificados todos os requisitos formais (eleições livres e justas, liberdade de imprensa, etc.) existe estabilidade política e social e um desempenho económico e social no mínimo satisfatório. No capítulo da estabilidade política, nomeadamente a durabilidade das legislaturas, há, para além de fatores culturais, vários mecanismos institucionais que o promovem. A larga maioria dos países anglo-saxónicos escolheu sistemas eleitorais maioritários (círculos uninominais) que favorecem que haja poucos partidos representados em sede parlamentar o que melhora a estabilidade governativa. Nos países de sistema proporcional (como a maioria dos continentais europeus) quanto maior a proporcionalidade, maior a potencial fragmentação parlamentar e instabilidade governativa. Os sistemas mistos, como o alemão (proporcional, mas com círculos eleitorais uninominais e plurinominais) combinam as boas características de ambos. Outra instituição importante, defendida por vários académicos (Marina Costa Lobo, André Freire, eu próprio), mas ausente da nossa Constituição, é o da moção de censura construtiva. Para além destas instituições formais há as informais: as normas, as convenções e os aspetos culturais. Há países (Finlândia, Holanda e a maioria dos países do norte europeu) em que há uma cultura política que promove a estabilidade. Após as eleições “sabe-se” que irá ser formado um governo maioritário mesmo com negociações duras e morosas. Portugal tem ainda um caminho a percorrer para a maturidade democrática e para isso poderá inspirar-se no modelo alemão que tem sistema eleitoral misto, moção de censura construtiva e cultura política consensual que promovem essa estabilidade. Não tendo nada disto resta-nos a possibilidade de haver um mínimo de racionalidade nos atores políticos, quer dos partidos da oposição quer dos que apoiam o governo, para garantirem essa estabilidade.
2. Comecemos pela oposição e pela táctica política. No nosso contexto institucional a política, através de coligações negativas de “bota-abaixo”, é obviamente possível. São negativas pois os partidos dos dois lados dos espectro político votam da mesma maneira, não por estarem de acordo sobre a proposta concreta (que não estão), mas apenas porque acordam em discordar do governo. Se as coligações negativas forem sobre coisas “menores” as consequências são “menores”, se forem sobre coisas essenciais à governação (Orçamento do Estado, programa de estabilidade) ou à legitimidade constitucional do governo (moções de censura ou de confiança) cai o governo. Isto só acontece, recordemos, pois não temos a tal moção de censura construtiva que só permite “coligações negativas” quando existem alternativas de governo. Há quem veja, na posição de Passos Coelho de o PSD votar contra a baixa da TSU, uma nova estratégia. Apesar do partido ser a favor e de resultar de um acordo de concertação social (o CDS absteve-se e foi coerente), o PSD votou contra. Os defensores alegam que simultaneamente mostrou as fragilidades da “geringonça”, deu um remoque no Presidente (que homologou a medida) e mobilizou o partido para tomar a iniciativa para combater Rui Rio. Espero que não seja nova estratégia pois isso significaria passar do mote “que se lixem as eleições” para “que se lixe o país, pois o que interessa são as eleições” (autárquicas primeiro e legislativas depois). Um PSD errático e incoerente pode efetivamente “lixar” o país. Os custos políticos e institucionais deste voto do PSD, foram um grande rombo na concertação social e a incerteza criada sobre se o partido inviabilizará medidas favoráveis à Europa e ao euro. Em contrapartida, um PSD sólido e coerente com as suas posições passadas, e a sua atitude presente perante a Europa ajuda e é necessário ao país. Obviamente que contribui para este segundo PSD que o PS o trate com respeito.
3. Vejamos agora o governo. A atual fórmula governativa baseia-se no programa de um governo minoritário PS, com acordos parlamentares (BE, PCP e Verdes). Estes “contratos” são incompletos e é bom que haja um entendimento comum sobre o que significam – um “meta-contrato” – pois há dois entendimentos muito distintos sobre as lacunas do contrato. Uma interpretação é que tudo o que não está lá é sujeito a negociação com os partidos que apoiam o governo. Esta interpretação é legítima, mas não me parece lógica, eficaz ou duradoura. Se tudo o que não está no contrato tiver de ser negociado, então a fórmula governativa que se deveria ter escolhido era uma coligação de governo e não acordos parlamentares. Não é eficaz nem duradoura pois poderia bloquear a atividade do governo se um número crescente de diplomas, sobretudo da acção executiva, tiver que ser consensualizado. Outra interpretação das matérias omissas nos contratos é que, ao nível parlamentar (projetos e propostas de lei) os assuntos omissos devem desejavelmente ser negociados. Já ao nível do governo (decretos-lei), do poder executivo, deve ser por regra o governo a decidir e a deliberar. Sempre que há uma apreciação parlamentar de um decreto do governo está a abrir-se uma excepção e está a provocar-se a interferência, legítima como é óbvio, do legislativo no executivo. A questão que coloco não é a da legitimidade mas da razoabilidade política destas excepções para o sucesso da fórmula governativa. Já tivemos dois casos importantes de alterações (ou revogação) de decretos-lei do governo: o Estatuto do Gestor Público e a TSU. Agora coloca-se a questão da municipalização da Carris. O que está no acordo é a reversão da concessão a privados. O governo decidiu pela municipalização, mas agora o PCP quer ir mais longe do que o que está no acordo e, dentro da gestão pública, renegar a gestão municipal. Independentemente da substância da questão, seria bom clarificar qual o “meta-contrato” em que funciona esta maioria parlamentar.
4. Há quem pense que as matérias dos acordos e das convergências programáticas já estariam esgotadas neste início de ano 2017. Não só discordo absolutamente como acho que pensar assim é ver o acessório e não o essencial. Para além da reposição de rendimentos e direitos, as duas coisas mais importantes que esta fórmula governativa pode fazer demorará toda a legislatura a implementar, e é algo que a distingue do anterior governo PSD-CDS. A primeira tem a ver com a revalorização das carreiras e remunerações dos trabalhadores em funções públicas no sentido da melhoria das qualificações no Estado e da qualidade dos serviços públicos. A segunda diz respeito às renegociações multilaterais, no quadro europeu, das dívidas soberanas. A política de lidar com a dívida de PSD assentava em consolidação orçamental rápida, com austeridade e privatizações. Esse caminho, seria votado ao fracasso por mais privatizações que se fizessem. A política actual é a de aposta no crescimento e emprego, consolidação mais moderada, sem privatizações. Necessitamos de tempo e de ser razoáveis para as implementar, se queremos mostrar maior maturidade na nossa democracia.
Professor universitário e deputado eleito como independente nas listas do PS de Setúbal e membro do grupo parlamentar. As opiniões expressas apenas vinculam o autor.