Quando se fala tanto de eleições legislativas, vale a pena meditar sobre a natureza e finalidade da política. Aparece para que possamos conservar a vida e destina-se a tornar viável a grande certeza positiva de todos os humanos: desejo de ser felizes. Dada a privação natural que nos acompanha (não somos providos de chifres, lã, dentes aguçados, unhas…), precisamos uns dos outros, ajudarmo-nos mutuamente. A felicidade entrelaça-se com a dinâmica da vida em sociedade. Mas sem um imaginário de confiança, que advém precisamente do apoio e do assentimento dos outros, qualquer coesão social será sempre de nível meramente pelicular.
Não é por acaso: um dos sintomas de degenerescência e causa das mais fundas feridas que hoje se podem infligir à democracia deriva precisamente da ameaça de desagregação pessoal e social, acompanhada pela impotência para realizar projetos de vida.
Confrontamo-nos com a extrema dificuldade em estabelecer fundamentos para além de toda a discussão, com um permanente conflito de interpretações e a necessidade de lhe retirar o potencial de agressividade, de violência e de exclusão. Porquê antes a ciência, a liberdade, a justiça, a honestidade, a vida, a paz? Tudo parece legitimável e poucas coisas indignam. A democracia não pode viver apenas dos seus próprios procedimentos. Não basta haver eleições. Já Platão fez notar que um tirano tem sempre necessidade de sofistas.
Gaston Berger, criador da prospetiva como disciplina científica, condensa em cinco regras os nossos modos de pensar e de agir do ponto de vista do futuro. A primeira, «ver longe» – temos de saber traçar um caminho sem a miopia autofágica do atual. A segunda, «ver em grande» – importa estabelecer consensos sem ficar prisioneiro do circunstancial. Depois «analisar em profundidade» – conservar atenção extrema e trabalho perseverante sem se deter no imediato e no óbvio. Além disso, «ter a coragem de assumir riscos» – porque a liberdade é um projeto de longo prazo sem manual de instruções. E, por último, «pensar no ser humano» – suprema medida do que realmente deverá interessar.
Assumir uma atitude prospetiva significa que as formas da nossa existência coletiva não são nem fruto do acaso, nem do fatalismo. Afirma-se antes um futuro voluntário (entre vários hipotéticos) que favorece a revisão dos medos propostos à humanidade (demográficos, pandémicos, ecológicos, biológicos, genéticos, informáticos, etc.). Previnem-se males evitáveis, preparando-se o tempo que se deseja para o maior bem de todos.
Como escrevia há algumas semanas Daniel Innerarity (El País, 2/09/21), as nossas sociedades sofrem de um anacronismo; estão preparadas para responder às crescentes especializações provenientes da modernidade, mas não chegam a compreender a moderação e o equilíbrio de que elas próprias carecem. A imprevisibilidade dos perigos obriga a encarar os problemas de um modo mais antecipatório, holístico, transnacional, colaborativo e horizontal.
O que é provável deve ser antecipadamente estabelecido, ideia que levou Paul Valéry a perguntar: «O que queremos e o que devemos querer?». Requer-se uma política mais recetiva, não apenas reativa. Como também dizia Aristóteles, a política funda-se na liberdade; ora a liberdade que interessa não é o enclausuramento no radicalismo e na egoidade, a recomposição de redutos intransponíveis, a insularização manipuladora à custa do artifício, mas a reconciliação do que é comum, encontro e partilha, «comunidade política», apesar de todas as diferenças.
Aquilo de que efetivamente precisamos é de um «ver em grande», sustentado num realismo do ponto de vista do futuro. Um realismo não afetado pelos aspetos negativos do presente.
Sob pena de submergirmos invocando aparentes sucessos, urge cultivar, moralizar, civilizar a ideia de «consenso», uma espécie de bem primário para a prioridade da liberdade. Claro que isso pressupõe uma lógica de compromisso que não pode vir senão de convicções nas quais depositamos confiança e prolongamos em considerações ponderadas e juízos refletidos. Diferenciar sem absolutizar, unificar sem amalgamar, criar vínculos sem que os números se adicionem ou equilibrem automaticamente, conciliar solidão e socialidade, ouvir sem desfazer a irredutibilidade do outro, coexistir com o adversário bem como com os seus próprios projetos de futuro, constituem eixos de uma cultura verdadeiramente democrática.
O mundo de hoje é interdependente, descentralizado, radicalmente plural. A resposta às crescentes situações de perigo transforma a viabilidade da democracia no destino da política.