António Costa não achou estranho o licenciamento do Freeport? Nem teve um momento de perplexidade perante o processo de licenciatura de José Sócrates? Nunca lhe causou surpresa o estilo de vida do primeiro-ministro? A intervenção na TVI? A CGD? O BCP? A PT?… Nada. Nadinha.
Perante o inverosímil de tal declaração não sei se prefiro pensar que António Costa está a faltar à verdade ou se padece do mais extraordinário défice de atenção alguma vez registado neste mundo. E presumo que também nos outros.
Mas o problema das declarações de António Costa não se esgota nesta inverosimilhança, aparentemente grosseira. Na verdade, para lá desta revelação quase anedótica sobre o que não percebeu, António Costa tenta habilmente passar a ideia de que os factos só foram conhecidos num depois que não se sabe ao certo quando aconteceu mas que há-de ter sido “depois”. Só que não foi depois. Foi “durante”, pois praticamente desde que José Sócrates se tornou primeiro-ministro que começaram a vir a público notícias que levantavam muitas dúvidas sobre a sua maneira de proceder.
Ao contrário do que declarou António Costa, os socialistas não só conheciam essas revelações como atacavam quem as fazia. Eram os tempos da “devassa”. Os diplomas de curso de Sócrates e as suas fichas na AR apresentavam várias incongruências? O que é que isso interessava? Era uma devassa. Como era possível José Sócrates manter aquele nível de vida? Lá vinha a devassa. O unanimismo soviético que os socialistas garantiam a Sócrates permitiu-lhe fazer o que quis.
Por fim, António Costa invoca o estafado “deixar à justiça o que é da justiça” para não se pronunciar sobre a relação do PS e dele mesmo com José Sócrates. Ora o que se exige a António Costa e ao PS não é que se pronunciem sobre o que é da justiça – Sócrates – mas sim sobre o que é da moral: a relação acrítica que eles tiveram com o seu ex-líder.
E este exercício é tão mais importante quando um dia ele terá de ser feito já não para os governos de Sócrates mas sim de António Costa. Porque foi o acriticismo dessa relação, a sua cegueira voluntária que permitiu que, no passado, Sócrates fizesse o que António Costa define como “factos que têm vindo a público”. E é essa relação em que os socialistas ignoram voluntariamente tudo o que comprometa o seu exercício do poder, que explica que o governo de António Costa destrua agora o SNS, encerre as melhores escolas e proponha Pedro Silva Pereira para a vice-presidência do Parlamento Europeu, sem que se ouça qualquer contestação entre os socialistas.
Não duvido que dentro de algum tempo, os socialistas quando confrontados com a sequência de factos desta semana e de outras semanas como esta – na sexta-feira o PS, PCP e BE chegaram a acordo para aprovar a Lei de Bases da Saúde, que revoga o decreto-lei das parcerias público-privadas (PPP). No sábado o PCP anunciou que quer novo imposto para depósitos bancários acima de 100 mil euros. Na segunda o BE propôs criação de Serviço Nacional de Justiça. Na terça o Parlamento debateu a eventual criação de quotas para afro-descendentes e ciganos e na quarta continuava em crescimento a imprescindível campanha de ódio contra o inimigo público de turno (desta vez coube o papel a Fátima Bonifácio) – venham declarar que não perceberam o real impacto das medidas. Ou que foram os comunistas a impô-las. Quiçá que o BE pressionou ou que o PR exigiu…
O PS que esteve ao lado de Sócrates e agora declara que nunca soube de nada é o mesmo PS que negociou o memorando de entendimento com a troika e depois não só esqueceu o que assinara como passou a ser contra esse mesmo memorando. Um dia esse mesmo PS e quiçá o próprio António Costa vão dizer que entre 2015 e 2019 nunca tiveram nenhum sinal que os levasse a suspeitar de que o país da propaganda não é o da realidade.
PS. A desautorização das polícias e a promoção de uma cultura de impunidade está a dar os seus frutos. Nas últimas 24 horas tivemos “um desacato no Monte da Caparica, Almada”: “Dois grupos de pessoas protagonizaram este sábado um desacato no Monte da Caparica, Almada, em que foram disparados tiros para o ar, mas quando a patrulha da GNR chegou “já não encontrou ninguém”, disse à Lusa fonte da corporação.” Já em Queluz a estação da CP teve de ser encerrada “na sequência de confrontos com facas entre grupos rivais. (…) os confrontos terão envolvido mais de uma centena de pessoas.” Perante este avolumar do problema venho propor quotas obrigatórias para políticos, dirigentes associativos, comentadores e jornalistas. Estes terão de utilizar obrigatoriamente os transportes públicos e viver nas zonas referidas nas notícias sobre “grupos”, “confrontos entre grupos rivais” e “desacatos”.