O risco de Rui Rio começar a ver a sigla PSD a ser interpretada pelos eleitores como a versão a gasóleo do PS é elevado. O apaziguamento das relações entre as direcções dos dois partidos já chegou ao ponto de assinarem documentos de consenso, vagos na definição de medidas, mas sinal de uma aproximação que deixou os irredutíveis apoiantes de Pedro Passos Coelho na iminência de um ataque de nervos.
Sob o ponto de vista do cálculo eleitoral, a estratégia de Rui Rio tem contornos de sobra para suscitar dúvidas. É difícil vislumbrar o que poderá ter o PSD a ganhar com um comportamento do estilo “português suave” ao reconhecer aos socialistas o estatuto de “donos disto tudo” que sempre cultivaram embora sob o chapéu mais correcto, politicamente, de “partido charneira”. A um ano de eleições legislativas, António Costa pode, de facto, apresentar-se como o líder que fala com todos, que estabelece pontes à esquerda e à direita e que, em suma, é o derradeiro garante da estabilidade e da pacificação.
Olhar para a peça que Rio e Costa colocaram em cena apenas sob o ponto de vista do potencial balanço entre proveitos e custos pode ser redutor. Convém avaliar se, como parece, o consenso sobre a descentralização não será apenas o primeiro passo para os dois partidos reiniciarem o processo de regionalização que os eleitores chumbaram em referendo. E, em matéria de fundos da União, é preocupante que a comunhão entre PS e PSD se limite, para já, a pouco mais do que o valor do envelope financeiro.
A repetição de erros do passado é bem possível. Portugal é uma prova eloquente de que a questão essencial é a de saber como aplicar o dinheiro dos contribuintes europeus com vantagem para o crescimento potencial, uma alternativa à mera obsessão pela execução dos programas que foi responsável, durante décadas, por vagas de desperdício, de oportunidades desbaratadas e por uma economia alquebrada.
Sobre estes temas, tem-se escutado e lido muito pouco, como se os apertos de mão entre Rui Rio e António Costa se resumissem a uma coreografia em que as consequências se esgotam na contabilidade eleitoral. Não é bem assim. E mesmo que a abordagem se resuma ao deve e haver de um mero concurso de popularidade, há argumentos que, fora do círculo de indefectíveis da anterior liderança social-democrata, podem ajudar a compreender o caminho escolhido pelo líder do PSD.
A procura de consensos nem sempre é a via para encontrar as melhores soluções. Mas, num país que, em 44 anos de regime democrático, já resvalou em três ocasiões para a bancarrota, viu-se forçado, em cada uma destas ocasiões, a pedir a ajuda financeira internacional e passou praticamente as duas últimas décadas sob permanente vigilância por causa de défices públicos excessivos, os perigos da conflitualidade concentrada no curto prazo não são uma simples ficção. E até há muita gente que concorda.
Se as sondagens estiverem correctas, perto de dois terços dos eleitores portugueses querem mais acordos entre o PS e o PSD, segundo um estudo publicado pelo Expresso há escassas semanas, o que indicia que o trilho adoptado por Rui Rio não andará, afinal, muito longe daquilo que o comum dos cidadãos deseja. Quanto às intenções de voto nos sociais-democratas, a táctica de Rui Rio revela que, no mínimo, o actual líder do PSD não tem piores resultados do que Pedro Passos Coelho, um primeiro-ministro determinado e corajoso, mas que, enquanto líder da oposição, ficou sem armas, e sobretudo não conseguiu arranjar outras, perante o aparente sucesso da geringonça nas frentes económica e financeira.
A perspectiva de acordos e consensos entre sociais-democratas e socialistas provoca pele de galinha nos opositores internos a Rui Rio. Mas nem é preciso ir aos arquivos buscar a solução de governação do “bloco central” para encontrar exemplos de como as tentativas de encontrar terrenos comuns para viabilizar soluções políticas não são matéria inédita ou fundamentação para escândalos e ressentimentos. O período que se seguiu às eleições legislativas de 2015 é revelador.
Brindado com uma vitória inesperada, mas impossibilitado de formar um Governo com apoio maioritário no Parlamento, Pedro Passos Coelho virou-se para António Costa. Enquanto garantia que jamais governaria com o programa dos socialistas, pegou em medidas que constavam entre as propostas do PS, escolheu 23 e apresentou-as como uma base para um entendimento.
O “documento facilitador de um compromisso”, como as direcções do PSD e do CDS decidiram chamar à proposta, não chegou para persuadir os socialistas, apesar de incluir promessas como a aceleração da eliminação da sobretaxa de IRS. Em resposta à relutância socialista, Passos Coelho decidiu ir mais longe. Prometeu a aceleração da reposição dos salários na função pública, abriu as portas à descida do IVA cobrado pelos restaurantes e até lançou o convite para que membros do PS integrassem o novo Governo.
Nada disto funcionou porque Pedro Passos Coelho não ofereceu a António Costa aquilo que o líder do PS realmente queria, isto é, o cargo de primeiro-ministro, com o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda, que já vislumbrava antes das eleições como a saída mais do que airosa para o desastre eleitoral que, de outra forma, lhe teria arruinado as ambições. O golpe que assegurou a sobrevivência política de António Costa foi pouco ortodoxo e muito revelador do desprezo do PS e dos seus parceiros pela escolha que os eleitores fizeram sobre o candidato que devia desempenhar o cargo de primeiro-ministro. Mas não se deve partir daqui para se passar uma esponja sobre a circunstância de o PSD de Pedro Passos Coelho ter chegado ao ponto de manifestar a disposição de partilhar o poder com o PS, enquanto se ataca, de garras afiadas e memória embotada, as aproximações de Rui Rio aos socialistas.
Em política, a coerência tem um valor relativo, sujeito às mudanças de conjuntura. Mas adoptar atitudes revisionistas da História é uma prática que só personagens pouco recomendáveis, dotadas do calibre moral de Estaline, consideram plenamente justificadas. Se o PSD parece a versão diesel do PS, Pedro Passos Coelho e os seus apoiantes não podem sacudir a água do capote.