Quem tiver entrado neste texto entusiasmado com a perspectiva de ler algum comentário sobre o caso dos e-mails, a investigação a jogos realizados pelo Benfica durante o período em que conquistou quatro títulos ou sobre qualquer processo que envolva apitos dourados, ou de outra cor, vai experimentar o sabor amargo da desilusão. Aqui, os “campeões nacionais” têm a ver com Manuel Pinho, José Sócrates e, sem surpresa, com a promiscuidade entre interesses pessoais e privados e poderes públicos. Tudo enquadrado nas teses sobre a necessidade de garantir o controlo por accionistas portugueses de empresas consideradas estratégicas, os famosos centros de decisão que teriam de ser impedidos de ir parar às mãos de capitalistas estrangeiros.

A excitação em redor da defesa destes campeões chegou a justificar a divulgação de um manifesto que, à semelhança do célebre sketch dos Gato Fedorento sobre a posição conciliatória de Marcelo Rebelo de Sousa acerca da lei do aborto, tentava casar o evidente intuito proteccionista com a recusa do proteccionismo. Nas vésperas daquilo que se esperava ser uma ambiciosa nova vaga de privatizações, com o Governo liderado por Durão Barroso a planear as vendas de posições do Estado na EDP, Galp e REN, o documento tresandava a um desafio para que a opinião pública mostrasse algum patriotismo e ajudasse a exercer pressão, pelo menos a suficiente para que os decisores políticos encontrassem uma forma qualquer de ajudar capitalistas sem capital a ficar na posse das jóias da coroa.

Entre 40 subscritores, havia assinaturas para todos os gostos. Muitas delas expressavam a tomada de posição de pessoas animadas de propósitos sérios na promoção de um debate que estava a tomar proporções elevadas. De tal forma que até a Comissão Europeia acabaria por se envolver na discussão devido aos obstáculos colocados por diversos Estados-membros a tentativas de compra de grandes empresas, em clara contradição com o espírito e as regras do mercado único e da livre concorrência.

Em retrospectiva, não deixa de ser curioso que um dos subscritores tenha sido Ricardo Salgado. Entre economistas como Ernâni Lopes e António Borges e o antigo presidente do BES e líder do Grupo Espírito Santo, o significado da expressão “conceito estratégico nacional” seria certamente diferente. Infelizmente, como temeram os mais cépticos, aquele que acabou por se impor foi o que estaria na mente de Salgado, no fim de contas o mais conveniente para consolidar um modelo em que as empresas eram privatizadas, mas sem fechar as portas giratórias que continuaram a ligar o poder público a meios empresariais ou quebrar as amarras de cumplicidade entre políticos e meia dúzia de oligarcas.

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Que tem isto a ver com Manuel Pinho e José Sócrates? Tudo e mais alguma coisa. Em primeiro lugar, porque as políticas imprudentes que foram seguidas durante os respetivos mandatos negligenciaram os avisos de que viver a crédito e acumular sucessivos e volumosos défices externos só podia terminar mal. Para os defensores das teorias sobre os “campeões nacionais” só podia acabar mesmo muito mal, com a venda de activos a investidores estrangeiros devido à incontornável necessidade de encontrar meios, rapidamente e a qualquer preço, para satisfazer os compromissos assumidos perante os credores.

Depois, porque os processos que têm como alvos o antigo primeiro-ministro e o ex-ministro da Economia revelam os abismos de venalidade, sem paralelo na democracia portuguesa, em que actores públicos e privados terão mergulhado, embalados pela sensação de impunidade de quem se sente um raro iluminado no topo de uma sociedade civil fraca, com uma Justiça sem meios ou sem vontade, e em que a existência de reguladores fortes é pouco mais do que uma conjugação de palavras num discurso de ocasião.

Alguns responsáveis socialistas parecem ter acordado para a gravidade de tudo aquilo que se passou durante um período em que o PS chegou a dispor de maioria absoluta. Governou como quis para, no fim, lavar as mãos perante um legado constituído por um rasto de destruição de valor, como atesta o triste fim de um “campeão nacional” como a PT, empurrada, entre outras desgraças, para uma fusão ruinosa com a Oi, e a exaustão financeira do Estado que forçou o terceiro resgate de Portugal após 1974.

Ana Gomes assumiu, sem rodriguinhos, nem cerimónias, o seu desconforto perante o silêncio dos camaradas de partido. Em contraste, os actos de contrição de António Costa, Carlos César ou João Galamba parecem resultar muito mais de uma simples manobra para garantir o regresso rápido à tranquilidade habitual do que da vontade sincera de começarem a explicar como foram capazes, até agora, de se manterem impassíveis e sem sinal do mais leve sobressalto de indignação, enquanto a opinião pública era confrontada com situações que não desmereceriam a mais ousada literatura e cinematografia sobre poder, lassidão moral e corrupção ao mais alto nível.

Sobre José Sócrates e Manuel Pinho pairam fortes indícios de que usaram e abusaram do poder que lhes foi confiado. Os tribunais farão o caminho que lhes compete, mas o assunto também pertence à política. Serviram-se do PS como um trampolim para alcançar objectivos pouco dignos, à margem da lei e da ética. Em troca, têm sido premiados com o silêncio, a tibieza e a desculpabilização de quem os apoiou e acabou traído. Isto é que são camaradas.