Está em curso uma operação silenciosa de alteração das estruturas de competição partidária em Portugal. As suas consequências são ainda imprevisíveis. Durante os últimos 30 anos, desde que Guterres chegou ao poder, em 1995, depois do longo consulado de Cavaco Silva, o PS havia consolidado o seu poder eleitoral e na máquina do Estado. Sob o ponto de vista eleitoral, com raras excepções, o PS tirou partido de períodos de crescimento económico para fomentar e cimentar a construção de clientelas que se tornaram a base eleitoral do partido. Ao mesmo tempo, o partido tomou de assalto a máquina do Estado, instalando pessoas da sua confiança em praticamente todos os lugares-chave.
As consequências das vitórias eleitorais sucessivas e da centralidade dos socialistas na vida política portuguesa, especialmente a sua capacidade de moldar a percepção do eleitorado como sendo o partido responsável pela redistribuição da riqueza, tornaram o partido uma verdadeira máquina de poder. Ao mesmo tempo, a capacidade de vencer eleições retirou quaisquer incentivos para o partido ser o agente de mudança em Portugal. A lógica é clara: para quê correr riscos de alienar uma parte do eleitorado quando o sucesso eleitoral tem sido constante? Para quê criar ganhadores e perdedores de reformas institucionais e sociais quando o status quo está a correr de feição ao partido?
Diferentemente dos socialistas, os últimos 30 anos foram um pesadelo para o PSD. Por um lado, o partido esteve praticamente sempre na oposição, sem acesso às prebendas do aparelho de Estado, levando a uma debandada de elites do partido. Por outro lado, nas poucas ocasiões que teve de chegar ao poder, fê-lo em condições muitíssimo difíceis: primeiro, com Durão Barroso em 2002, quando este encontrou o país num procedimento por défice excessivo e a caminho da recessão, mais tarde, em 2011, quando Passos Coelho chegou ao poder no início da implementação do programa de austeridade. Passos Coelho cometeu um erro capital: julgou que os portugueses seriam duros com os socialistas por terem trazido o país ao buraco no qual o PSD o encontrou em 2011. Nada mais longe da verdade. Os eleitores não estavam interessados em fazer reformas ou retirar ilações do passado. Pelo contrário, queriam, acima de tudo, garantir que tudo ficava na mesma e nenhum partido melhor do que os situacionistas socialistas para garantir isso. O ciclo de Passos Coelho encerrou uma lição que Montenegro aprendeu: as vitórias eleitorais do PSD aconteceram apenas quando o sistema que o PS alimentara estava já tão podre, que nem os mais afoitos prosélitos ousavam defendê-lo.
A vitória de Montenegro em 2024 mudou tudo isto. Pela primeira vez desde a vitória de Cavaco Silva em 1991, o PSD chegou ao poder num momento de crescimento económico e com a Europa a enviar dinheiro de forma consistente. Os acontecimentos de Novembro do ano passado foram uma bênção para António Costa, que, mais uma vez, mostrou que a sorte protege os audazes. Passado um ano, Costa mantém o seu capital político intacto e foi levado em ombros pelo regime até ao seu destino europeu.
Como espectador privilegiado dos anos do Passismo, Montenegro aprendeu algumas lições preciosas, a principal das quais é esta: o PSD precisa de tempo no poder para implementar uma estratégia política semelhante ao PS. No fundo, precisa de estar no governo durante um momento de vacas gordas para cooptar as suas clientelas, tomar de assalto a máquina do Estado — que atrairá elites para a órbita de um partido que estava a ficar exangue e sem quadros –, e conseguir refazer a sua imagem junto do eleitorado, especialmente junto dos pensionistas, um grupo eleitoral que tende a acudir às urnas de forma mais consistente do que os mais jovens. No fundo, esta é a primeira oportunidade que o PSD tem em muitos anos para se tornar o partido charneira do poder, especialmente num momento em que o eixo de competição partidária se deslocou para a direita, tornando o partido ainda mais central.
Daqui decorrem duas lições, uma próxima e outra mais longínqua. A próxima é simples: Pedro Nuno Santos deve fazer tudo o possível para garantir que o governo de Montenegro tem vida curta. O líder do PS tem todos os incentivos para chumbar o Orçamento de Estado e ir novamente às urnas, mesmo numa situação arriscada, para tentar impedir que o PSD se consolide no poder e tenha o tempo para implementar a estratégia da qual falei acima. Dentro de três anos, quando for possível ir novamente às urnas devido aos constrangimentos do calendário presidencial, será provavelmente tarde de mais para o PS. Assumindo que a economia se mantém estável, o PSD ter-se-á então consolidado novamente como um partido que redistribuiu riqueza e tem uma marca associada a tempos bons e não apenas ao cinzento dos anos de chumbo da troika. Nesse caso, o PS ficará sem discurso. De resto, é já visível como isso começa a acontecer, com o PS a lembrar a necessidade das contas certas ou, surpresa das surpresas, a utilizar o FMI como autoridade para fazer luta política contra o governo.
A consequência mais longínqua desta alteração na estrutura de competição partidária é mais complexa e tem consequências mais graves. Com esta alteração funcional no sistema partidário português, o país deixou de ter qualquer actor político com vontade e capacidade de fazer reformas. Ao contrário do que clamou durante anos, durante os quais criticou – com razão! – António Costa pela ausência total de reformas, o PSD transformou-se numa espécie de ersatz do PS, com pequenas modificações de maior atenção às empresas e à descida de impostos. As consequências a prazo serão gravíssimas. Portugal está definitivamente entregue a dois partidos políticos cujos objectivos são, meramente, navegar à vista e cooptar clientelas para redistribuir os benefícios parcos gerados por uma economia fraca e, claro, distribuir o dinheiro que ainda vem da Europa. Do ponto de vista de maximizar os benefícios do partido, Montenegro está a fazer um trabalho excelente. Do ponto de vista do país, tenho mais dúvidas.