Recuemos 12 anos, até dezembro de 2010. O então presidente da FIFA, Joseph Blatter, anuncia ao mundo que a candidatura do Qatar havia sido a eleita para a organização do mundial de futebol em novembro de 2022. Uma decisão esdrúxula, para dizer o mínimo, que impôs a interrupção e a redefinição dos calendários competitivos das diversas ligas profissionais e que, ainda hoje, suscita muitas dúvidas e incompreensões.

Nestes últimos doze anos, o Qatar encetou um ambicioso programa de obras públicas para acolher o torneio. O projeto global de transformação que incluiu a construção de estádios – alguns dos quais ainda por inaugurar -, um novo aeroporto, uma nova rede viária, o desenvolvimento de um sistema de transportes públicos, novos hotéis, entre outras infraestruturas de grande envergadura. No que toca ao betão, o Qatar empenhou-se em não desperdiçar a oportunidade concedida com a organização de uma competição internacional para se apresentar ao mundo como um estado moderno, desenvolvido e projetado para o futuro.

Acontece que o projeto de desenvolvimento alavancado no futebol e assente numa dinâmica de construção desenfreada não é mais do que uma projeção artificial de prosperidade e desenvolvimento. Nas entrelinhas deste aparente vigor empreendedor, vislumbra-se um rasto de desrespeito pela vida humana, de desumanidade e de violação de direitos fundamentais nunca antes visto num projeto desta magnitude.

De acordo com uma investigação liderada pelo jornal britânico The Guardian, mais de 6.500 trabalhadores oriundos essencialmente da Índia, do Bangladesh, do Nepal, do Sri Lanka e do Paquistão morreram desde que o país se lançou na aventura de organizar o campeonato do mundo. Estima-se que, durante os últimos 12 anos, uma média de 12 trabalhadores migrantes tenham perdido a vida a cada semana.

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A mesma investigação sublinha que o número total de mortes será provavelmente superior, uma vez que os dados atuais não incluem o registo de vítimas mortais de outros países que disponibilizaram um número muito significativo de trabalhadores, como são os casos das Filipinas e do Quénia, não estando igualmente contabilizadas as mortes ocorridas nos últimos meses de 2020. Ao todo, estima-se que cerca de 8.000 pessoas tenham perdido a vida durante o período em que decorreram os preparativos para a competição.

A estes números somam-se relatos verdadeiramente chocantes de dias consecutivos de 12 horas de trabalho ininterrupto e o impedimento de deixar o posto de trabalho para ir à casa de banho ou fazer uma pausa. Acresce a absoluta ausência de salubridade nos alojamentos destinados aos trabalhadores, o racionamento da alimentação disponibilizada e a perpetuação do sistema Kafala, um regime que estabelece que os trabalhadores não podem mudar de emprego ou ausentar-se do país sem a autorização prévia dos empregadores.

A organização internacional Human Rights Watch vem reforçar a ideia de pouco acompanhamento por parte do organismo que tutela a organização da competição quando, num relatório publicado em 2021, denuncia a circunstância de os trabalhadores estrangeiros serem submetidos a deduções salariais punitivas e ilegais, atrasos no pagamento de salários e a sujeição a períodos de trabalho excessivamente longos e fisicamente extenuantes.

Um cenário pernicioso que porventura deveria suscitar a reflexão de todos os que, com o seu voto e consequente apoio, contribuíram para a organização catari da competição.

Ao longo dos últimos anos, a FIFA arvorou-se defensora das causas mais justas, habituando-nos a campanhas bem-sucedidas contra o racismo, a xenofobia e a promoção da igualdade no desporto. O aparente alheamento e desinteresse pelos acontecimentos destes últimos 12 anos não podem, por isso, deixar de suscitar estranheza, considerando os princípios de lisura e rigor que são exigíveis à instituição que regula o futebol à escala mundial.

Quando, a partir de 20 de novembro, as ruas de Doha se encherem de adeptos a celebrar efusivamente as vitórias das respetivas equipas nacionais, permanecerá para sempre um legado de inobservância dos direitos fundamentais dos trabalhadores que, com a sua vida e em prejuízo da sua saúde, permitiram a edificação deste mundial.