1. O regresso da barbárie? Assim parece nestes desgraçados dias e mesmo que em certo sentido ela tenha vindo a ser semeada, tantos os erros cometidos pela “Europa” e pela sua deficiente vontade política, à barbárie diz-se não: quem me diria a mim ontem que hoje, um Estado de direito europeu assente em valores universais partilhados por todos os que os defendemos por neles assentarmos o nosso escolhido modelo de vida, seria capaz de recusar cais e terra firme a um grupo de deserdados da terra? Quem me diria a mim que um banal dia da minha vida, o Presidente do mais poderoso país do mundo seria capaz de separar pais de filhos e não me venham dizer que está a fazer o que avisou que faria ou que ele foi “votado democraticamente”, já ouvimos. Ou que agora na Europa se irão perseguir ciganos a dedo. Já conhecemos essa história e a História. (Ou de facto, volta-se sempre à História?)
Por isso apesar do ocidental Trump ter previamente “avisado” dos seus gestos, e de “toda a gente” procurar a América como destino de eleição e da “media” se empolgar por vezes muito duvidosamente e sempre só para um lado; apesar do europeu Matteo Salvini ter feito do combate à imigração o eixo da sua recente campanha eleitoral em Itália, a esta espécie de barbárie diz-se não.
Não sei se Macron e Angela Merkel terão razão quando com um desajustado optimismo nos informam que “a UE está prestes a abrir um novo capítulo da sua história” e também ignoro se o próximo Conselho Europeu será capaz de se mostrar à altura da decisão e da convicção na vontade politica que lhes exigimos que exiba e concretize. (Provavelmente não porque o problema não tem solução e porque todos os erros foram cometidos.) Mas há uma coisa que sei: ontem eu teria apostado a minha vida em como seria impossível assistir hoje, na Europa e nos Estados Unidos, a algo de muito aparentado com o regresso da barbárie.
2. Sobre a Itália, algumas apressadas notas, venho de lá, Turim, Florença, Roma.
Mas a Itália, “segunda pátria de toda a gente”, que nos deixou em herança a lei e o génio, a civilização e o sublime – a Itália está cansada. Abatida pelo desnorteio, acossada pela fúria, à mercê de perigos e incertas aventuras, encontrei um mau quadro onde me pareceu ver muitas luzes vermelhas acesas.
Não gostei de tudo o que durante dez dias vi, ouvi e li nem da forma como “se” lidou com a questão do Aquarius, impedido de acostar. Mas – sejamos sérios – para alguém tão, tão longe desta realidade quanto um português habitando um país totalmente “virgem” de desembarques maciços, é expedito condenar a implacabilidade desta política (?) anti-imigração.
A Itália — sejamos sérios outra vez — está há longos meses sozinha na primeira fila do desembarque incessante, desesperado e caótico de milhares e milhares de refugiados.
E os italianos, que já estavam infelizes — o desemprego cavalga, o nível de vida desce, os serviços públicos não servem, a burocracia é asfixiante, o espaço público degrada-se –, começam a estar fartos. O cansaço exige um culpado e para eles o embaraço é a escolha: o euro a que mais de metade da população atribui a descida do nível de vida? Os imigrantes que “os outros não querem”? Bruxelas vista como fonte de indecisão e palco de hipocrisias várias? Sim, tudo isto, basta ouvir as pessoas e eu ouvi: se o gesto de Salvini é inadmissível, ele não pode ser separado do solitário calvário que o precedeu. Quem me lê ao viés, guiado pela má fé ou pelo devastador pensamento politicamente correcto, achará que estou quase a desaguar na redenção do mesmo Salvini, mas justamente não estou e quem achar isso simplesmente auto-desprestigia-se a si mesmo. Limito-me a descrever uma trágica ocorrência e a tentar analisá-la: o líder da Liga que já não é só do Norte decidiu subiu o patamar do risco e do desafio e devolver aos congéneres europeus, que detesta e de quem há muito desconfia, a responsabilidade e a culpa pelo que “se passa”.
E passa: basta só lembrar a falha de compromissos em alguns países com pergaminhos democráticos, evocar a soma de referendos convocados até a resposta do “povo” ser conforme à conveniência; ou a hipocrisia reinante ou as fragilidades evidentes e isto durante anos e anos. Basta enfim recordar apenas o essencial — a desunião entre 27 países e 27 povos – para perceber que os maus da fita não estão todos do mesmo lado.
Fechar portos e portas não é solução nem sequer um princípio seja do que for: de conversa, de negociação, de estratégia e entendimento comum e ainda bem que à hora a que escrevo já houve uma marcha-atrás (mesmo que ainda semi-indefinida). Seja como for, com apenas uma ou outra excepção, não se ouviu uma voz dissonante no Movimento 5 Estrelas, aliado da Liga no governo, na questão do barco, nem constaram divergências públicas entre ambos. Os parceiros não divergiram talvez porque todas as sondagens lhes dão razão: uma imensa maioria de italianos, e não só os eleitores da Liga, rejeita taxativamente a europeia “hipocrisia dos bons”, capitaneada por Merkel e Macron, na questão dos refugiados. Passou-se um cabo, passou a haver duas “Europas”, a do protesto e a outra. A divisão entre elas é feroz e glacial. E agora?
3. Mas há mais: a implausibilidade da aliança governamental em Itália entre dois partidos anti quase tudo é relativizada pela necessidade da sua própria sobrevivência: é natural cavalgarem juntos pelo menos até as próximas eleições. E embora seja quase demencial prever ou antever o futuro deste laboratório político, a clareza dos desígnios políticos da Liga e do Cinco Estrelas ajuda ao vaticínio de um futuro “unhappy end”: a Liga quer arredar de vez Berlusconi e a sua Força Itália do círculo da influência politica, ambicionando ocupar o seu território eleitoral. Luigi Di Maio e o seu Movimento querem o mesmo, do outro lado da cena política: reduzir (ainda mais) a força e a influência dos sociais-democratas do PD e ficar-lhes com os votos. E na oposição o PD vela e vegeta. Estiola, agora já sem Renzi mas com outro desasado cavalheiro na liderança. Desaparecerá como outros partidos europeus? Dúvida. E quem está, terá lugar cativo na nova política? Incógnita. Longe vão os tempos “conhecidos” em que partidos igualmente “conhecidos” se eternizavam na polca do poder. Agora é “assim”. Melhor?
4. Por falar em Matteo Renzi: é outro italiano infeliz. Encontrei-o num combóio entre Florença e Roma, blaser azul, computador aberto, rosto fechado:
“O senhor é quem eu estou a pensar que é?”, perguntei para o ar da carruagem 5.
“Ah… (o rosto entre abriu) maybe…”
Depois de Varoufakis há dois anos num avião, e da vã conversa que então travámos, o guião (não tenho sorte com políticos nos transportes) repete-se com o ex-líder do PD: falar? Ele? Deus o livrasse que a vida não está fácil e a dele ainda menos.
Percebe-se: perdeu tudo. O ex-premier recusa alianças com os “Cinco Estrelas” – posição não unânime em bases e tropas que temem vir a sumir-se do mapa eleitoral italiano — e está hoje muito mais só. É um político isolado a quem os italianos ainda não perdoaram erros e escusadas leviandades. O seu regresso é visto como praticamente impossível.
Mas a (minha) tentação de poder partilhar da sua perplexidade não é pequena: a falta de substância política, de elites e de massa critica do inorgânico embora transversal Cinco Estrelas pode inquietar. O seu êxito ainda mais. Apesar de totalmente inscrito no ar deste tempo, de ser uma omnipresente e vertiginosa plataforma digital, do eco do seu “mentor-filósofo” Casaletti, não se alcança inteiramente o sucesso desta nova representação política. Ainda não se alcança.
Do outro lado, Matteo Salvini é um forte e emblemático político, o governo é como se fosse dele. A Liga era do norte, agora é do sul e do leste e do oeste. Mas quando peço ao meu companheiro de viagem e ilustre interlocutor que me seja cicerone neste puzzle, “não, não e não”.
Vida de jornalista. Cujas preocupações são indistinguíveis das da cidadã: em que mundo vivemos?
PS: Morreu Fernando Guedes, um homem formidável, também um grande homem do Porto, dos que já não há. Estava óptimo apesar da muita idade, estava sobretudo vivo: continuava a ir à Sogrape, a visitar as quintas, a opinar sobre as vinhas. Há dias tropeçou numa escada de três degraus, a queda foi lhe fatal. Há semanas evoquei aqui José Manuel de Mello (outro português de excepção) a propósito da publicação de uma bem vinda biografia sua. Fernando Guedes também merecia que ficasse registada a memória do tanto e tanto que fez pelo país, em marés altas e marés baixas, e do maravilhoso ser que era.