Esta semana marca-se simbolicamente o fim da legislatura, com o debate do Estado da Nação. Quatro anos que ficam já definitivamente na história da democracia portuguesa, por terem rompido o muro que existia entre o PS e o PCP, alargando as alternativas de governação do país. Quatro anos que precisam ainda de esperar por algum tempo para se perceber exactamente os custos dessa aliança à esquerda que, quer se queira quer não, condicionou a combinação de política económicas. Um governo apenas do PS teria tido uma política mais próxima de um executivo do PSD com o CDS, ter-se-ia concentrado menos nos resultados de curto prazo e colocado mais recursos em medidas com efeitos a médio e longo prazo.

A degradação dos serviços públicos, com relevo muito especial para o sector da Saúde, é a face mais visível dos custos destes quatro anos de governação. Os efeitos, a prazo, destes custos são ainda difíceis de medir. Neste momento já se traduziram em mais despesa pública na saúde e compromissos de mais investimento em sectores como os transportes públicos.

A pergunta que se impõe é: até que ponto esta espécie de “défice público” escondido se traduzirá a prazo numa escolha mais dramática entre maior degradação ou agravamento efectivo do défice público? O que poderá condicionar a política orçamental dos próximos anos, designadamente o objectivo de reduzir impostos, que faz parte do programa eleitoral já revelado pelo PSD. Não será por acaso que o PS criticou o programa do PSD, dizendo que abre um buraco orçamental – pode admitir-se que sabe a margem que não deixou para a redução de impostos no futuro por causa do “défice público” oculto.

A gestão destes quatro anos foi politicamente muito inteligente. Caracterizado por um pragmatismo, o Governo concretizou medidas que maximizavam a receita ou minimizavam a despesa pública mas eram percebidas como não tendo qualquer efeito nos bolsos ou na qualidade de vida dos cidadãos. Foram quatro anos de ilusão de almoços grátis que se traduziram obviamente na popularidade do Governo e em especial do ministro das Finanças – o mais popular desde o tempo de Sousa Franco.

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A viragem da página da austeridade traduziu-se basicamente no aumento do poder de compra dos grupos organizados e mais ruidosos, num processo facilitado pelo apoio do PCP do BE. Os grupos sem voz ou tudo aquilo que não se vê acabou por experimentar, nestes quatro anos, uma austeridade ainda mais apertada do que nos quatro anos anteriores. A que se juntou uma capacidade política extraordinária de neutralizar todas as críticas.

Vejamos o caso do investimento público. Alguns projectos megalómanos e irracionais da era de José Sócrates foram alvo de critica e apontados como uma das razões do colapso financeiro. Criticas, que são focadas em projectos que não são rentáveis nem financeiramente nem economicamente nem socialmente, rapidamente são transformadas em criticas a todo e qualquer investimento público. É com este sofisma – “és contra investimentos públicos irracionais, logo és contra o investimento público” – que o PS se defende da falta de investimento público. Esta mensagem tem obviamente muito mais força do que passar a explicar que estamos, em grande parte, a falar de investimento público de reposição, que vai desde máquinas para diagnóstico, nos hospitais, até barcos e locomotivas para os transportes públicos.

Um outro exemplo é o dos impostos. O Governo desafia os opositores a identificarem impostos que tenham sido aumentados, mostrando em contrapartida que baixou a sobre-taxa de IRS e, com menos orgulho, que reduziu o IVA da restauração. O aumento da receita fiscal, argumenta, está relacionado com o crescimento da economia e designadamente com a criação de emprego e o aumento do consumo – especialmente por via do turismo. Tudo isto é verdade e poderá, de facto, explicar boa parte do aumento da receita fiscal que ocorreu acima do PIB nominal. Mas é meia verdade. Desde 2018 que as mudanças nas regras dos recibos verdes, primeiro no IRS e este ano na Segurança Social, têm um impacto que é difícil de avaliar, de imediato, mas que com uma elevada probabilidade significa pagar mais impostos e contribuições.

Há um outro exercício que mostra até que ponto se mascarou uma política orçamental contraccionista e que é a análise dos decretos de execução orçamental. Com a aprovação do primeiro-ministro e apesar de nada se dizer sobre o assunto, nunca como nesta legislatura o Ministério das Finanças teve tanto poder. É interessante como no passado se debateu tanto a necessidade de dar ao ministro das Finanças super-poderes, sem que realmente os tenha tido, e como nesta legislatura, sem nunca se ter debatido o tema, Centeno foi mesmo um ministro poderoso.

Claro que não há política económica sem política. E a política económica é mais fácil de se concretizar com mensagens políticas eficazes, que convençam (ou iludam) as pessoas. Do ponto de vista político este Governo foi um sucesso que ultrapassa os primeiros mandatos de Cavaco Silva e de José Sócrates. O sucesso político é reforçado quer pelas baixas expectativas com que se estreou quer pelos muros que fez cair à esquerda, dando ao país mais alternativas de governabilidade.

Já é mais discutível se estes quatro anos se traduziram numa sociedade mais transparente e tolerante. Há sinais preocupantes de radicalismo, intolerância com quem pensa de forma diferente, catalogações extremas entre esquerda e direita e perigosas permissividades para uns enquanto a outros quase nada é permitido. A assimetria na avaliação de actos e opiniões agravou-se e ampliou-se. E isto resulta numa sociedade que se pode tornar opaca e permeável a movimentos inesperados de extremismo. Nada pior do que não percebermos exactamente o que pensam as pessoas.

Quanto aos efeitos económicos e sobretudo financeiros destes quatro anos vamos percebê-los melhor depois das eleições de Outubro. Os indicadores, que já temos, permitem dizer que estamos longe de ter resolvido o nosso problema de dívida pública e privada. Continuamos muito frágeis e expostos a uma tempestade financeira. Podia ter sido diferente? Podia, infantilizando menos as pessoas e tornando-as conscientes do problema de endividamento que temos. A austeridade continuará, mais ou menos disfarçada, com escolhas mais ou menos mascaradas. Nestes quatro anos escolhemos dar mais dinheiro às pessoas que trabalham no sector público e degradar os serviços públicos.