Visto a partir de Lisboa, e estudado com muita atenção, 2023 foi um ano inquietante. Deixou-nos quatro grandes preocupações, nos capítulos da democracia, da pobreza, da habitação, e da mobilidade e transportes. Devem transformar-se em prioridades políticas para 2024. Por ordem crescente de importância, começamos pelo fim.

Mobilidade e transportes. Os números galopantes do INEM para acidentes com bicicletas, ao longo dos anos, confirmam que as ciclovias não contribuíram para os diminuir. Nem se espera que venham a contribuir, é bom tirar daí o sentido. As bicicletas são visivelmente um instrumento político usado para levantar obstáculos à circulação de carros particulares, uma verdade simples que tem custado a penetrar as piedosas cabeças da direita. Só que a multiplicação de ciclovias, sobretudo nas já pressionadíssimas ruas e avenidas do centro de Lisboa, traduz-se na injustiça de sacrificar o tempo e o bem-estar de vários milhares de pessoas para beneficiar um grupo muito minoritário, mas puritano e colérico. Custa a acreditar neste erro político básico. Ainda para mais numa sociedade envelhecida, a bicicleta não é definitivamente uma solução de mobilidade urbana. É um problema. E um problema de natureza ideológica, decretado pela ditadura woke. Convém ter presente o seguinte, quando se tornou um hábito evocar “as pessoas” a propósito de coisa nenhuma e, ao mesmo tempo, despersonalizar o que desagrada ao poder: perseguir “os carros” é um exercício que não existe; o que existe é perseguir as pessoas que precisam de usar os carros, sejam carros particulares, carros de bombeiros, ambulâncias, ou transportes colectivos.

Habitação. Na última década estatística, entre 2010 e 2020, o Estado construiu em Lisboa 17 casas de habitação pública por ano. O número astronómico inclui todas as casas construídas pela administração central, empresas públicas, institutos públicos, e a própria Câmara Municipal de Lisboa. Nas quatro décadas anteriores, ou seja, em ’70, ’80, ’90, e primeira década do século XXI (entre 2000 e 2010), tinham-se construído perto de 1.000 casas de habitação pública por ano. O que mudou então, a partir de 2010, para que os mesmos serviços, e praticamente as mesmas pessoas e os mesmos funcionários, descessem de 1.000 para 17 casas por ano? Tirando os anos da tróica, com quem ele próprio negociou uma intervenção, o Partido Socialista governou livre e solto a República e a cidade de Lisboa, coligado ou em aliança estreita com a extrema-esquerda. A esquerda não construiu nem deixa construir ou comprar. Lembremos que o preço final de uma casa é composto por 60% de custos efectivos e 40% de impostos. Não, o problema não está nos “senhorios”, nem na “ganância”, na “especulação imobiliária”, e muito menos no “capitalismo”. O problema é a esquerda: por junto, vale 17 casas por ano e 40% de impostos.

Pobreza. Gasta-se pouco tempo a falar de pobreza em Portugal. Por critérios estatísticos europeus, 19,8% da população residente está em risco de pobreza ou exclusão social. São mais de dois milhões de pessoas, ou uma em cada cinco. Pior, 12% da população empregada vive abaixo do limiar da pobreza. Ou seja, ter trabalho não livra estas pessoas da pobreza. Que é hoje também um problema urbano, como se vê em Lisboa nos bairros sociais, onde a falta de segurança e de presença da Polícia são, para quem vive ali, o primeiro factor de exclusão social. A história da caixa multibanco no Bairro da Boavista é o ponto mais exemplar e completo a que a pobreza de uma sociedade pode descer. De maneira que em vez de grafitis, “arte” urbana, casas-de-banho mistas, igualdade de género, e outras idiotias que ocupam a desordem pública, é preciso dedicar tempo e esforço ao problema da pobreza.

Democracia. De todos, o ponto mais importante. Temos um problema grave e sério com a liberdade de expressão de deputados eleitos, na Assembleia da República como na Assembleia Municipal de Lisboa. A esquerda forma maiorias e manda calar os adversários. É uma combinação de prepotência e de impreparação política por parte de quem manda nas assembleias. Pior, há documentos votados sem quórum; sem maiorias qualificadas, como às vezes se exige; e com toda a espécie de irregularidades, cujo único aspecto em comum é serem da conveniência do PS. Em toda a parte, vale a mesma regra, que de resto se tornou um hábito banal: quem forma maiorias decide não só o que se pode ou não dizer, mas também quais os procedimentos que se podem atropelar despreocupadamente. Um ataque aos procedimentos é um ataque formal à democracia. E defender a democracia não é vozear contra o “populismo”; é exigir e garantir o regular funcionamento das instituições representativas.

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