Merecer ou não benefícios, regalias e direitos é uma exigência que se quer pautada pela justiça, princípio fluido e escorregadio, quando se trata de medir a retribuição devida ao valor dos indivíduos pela régua simples do êxito material. O discurso meritocrático sustenta a ideia de que aqueles que não conseguem esse êxito são os únicos e inteiros responsáveis por isso – uma meia verdade enganadora, um reducionismo injusto pois a vida é mescla de acções e capacidades de um lado e condições sociais do outro.
O mérito, sinónimo de aptidão e talento, tende a ocupar um espaço entre a sorte e o infortúnio, eventual devolução divina, prémio pelo comportamento mais ou menos assertivo na sociedade. Mas ficam sem justificação os sofredores, justos e bons, cansados de trabalho exemplar sem prémio que se saem pior na vida do que muitos inertes bem-nascidos, e outros mal-nascidos, mas politicamente bem posicionados.
Neste lusitano país, a existência de um modelo meritocrático, que a todos proporcione igualdade de oportunidades, faz parte de um ideal utópico, pois o factor máximo que determina a aquisição de poder e força, ainda se situa longe do esforço e decisões do indivíduo comum. Michael Young (1915-2002), o pai do termo “meritocracia” no livro The Rise of the Meritocracy, uma obra de ficção situada na Inglaterra de 2033, contestava o sistema educacional inglês, comprometido com a igualdade de oportunidades, que perpetuava a desigualdade ao relegar as crianças pobres para escolas de segunda categoria. O parâmetro do mérito educacional, desacompanhado de outras considerações éticas e substantivas, num apelo à igualdade, pode converter-se numa forma de desigualdade.
O ensaio visionário do autor enquadra bem a actual realidade portuguesa visível no ranking das escolas, instrumento ambíguo, a que a boa pedagogia terá de colocar muitas reservas. A listagem da “imagem de marca” das escolas pelos resultados dos alunos, parte do pressuposto errado que o sistema educativo a todos trata por igual. Mas como é que o miúdo do bairro social, que não faz os trabalhos de casa, pode competir com o “menino” do colégio privado com propinas caras e explicações suplementares? E alguém avalia os danos no auto-conceito de alunos e professores das escolas na cauda do ranking? Aprovar um inventário que assenta em inigualáveis condições de partida dos alunos, é ignorar os erros do paradigma do sistema. Mais importava motivar os jovens para altos níveis de desempenho, numa cultura de promoção da individualidade, pensamento crítico e criatividade. Mas, como bem sabemos, pouco ou nada interessa ao poder uma maioria de indivíduos críticos e bem formados, contestatários do statu quo.
É preciso manter um cepticismo saudável em relação às virtudes da meritocracia como o oásis das lideranças, visto que está poluído com os critérios da oligarquia, dona do escantilhão, que fecha a porta depois de por ela terem passado os seus filhos e afilhados. Uma sociedade assim não é resposta às nossas preces por justiça e decência. A abertura à diversidade dos indivíduos é a melhor garantia de mérito e origem de uma ordem liberal (Ralf Dahrendorf, 1929-2009). Esta abertura a todos os cidadãos requer o fim dos privilégios de nascença e a substituição do nepotismo por concursos públicos impessoais, onde as grelhas de classificação não visem incluir escolhidos a priori, mas escolher os melhores, os dotados de inteligência superior, capazes de apresentar soluções estruturadas que os outros não veem, quando em causa está o governo das instituições.
Que o mérito não se afaste da meritocracia, nem o atributo do atribuído para que não vejamos os propostos para cargos decisores, nomeados segundo imunidades de valor conveniente ao poder. Os dados do jogo da mobilidade social permanecem viciados, e por cá, a vida política, a gestão, a ciência, a tecnologia e outras carreiras não são atraentes a muitos jovens talentos com uma vida de empenho e qualificação. A procura de satisfação profissional e justa remuneração, obriga-os a deixar o seu país rumo a outros destinos onde se valoriza o potencial humano, independente da origem e das convicções pessoais.
Em breve, Portugal estará a importar a alto preço guidelines e pareceres internacionais para resolver problemas internos complexos, quem sabe provenientes dos “cérebros” que agora desperdiça, mas que outros bem aproveitam e desenvolvem.
John Stuart Mill (1806-1873), no livro On Liberty salienta duas premissas “…a liberdade de acção é necessária para a cultura da individualidade” e “…a individualidade como um bem em si, um valor que não necessite de nenhuma prova”, (Cap. II), pressupostos que se opõem aos modos de pensamento habitual, que não reconhecem valor intrínseco ou um mérito especifico à espontaneidade. Só a livre expressão e discussão argumentativa favorece o desenvolvimento das sociedades, onde a valorização da singularidade é caminho para uma sociedade plural.