1 Talvez seja melhor assentar nisto: os Portugueses estão bem e, quem sabe, felizes. Estarão pelo menos longe da infelicidade activa onde os ficcionávamos. A maior parte trabalha no Estado que nunca os despedirá nem lhes pedirá contas. Ninguém os maça por aí além, pouco se lhes exige, trabalham poucochinho, não praticam a ambição, não correm atrás do mérito. Talvez porque tenham ficado contaminados pela pior herança do 25 de Abril – a suprema cultura dos direitos versus a modéstia da prática dos deveres. E, ultimamente, não ouvem senão falar de imenso dinheiro, estando certos que parte dele lhes irá cair no bolso. E como descrer, quando se vê o tonitruante chefe da orquestra governativa a reger a sua sinfonia do “País das Maravilhas” e para a qual até já tem a autorização para ir ao banco para a levar à cena? (voltarei a isto).
Ao pé desta “terra prometida” pelo socialismo a milhares de portugueses que pouco pé tomam na política e que ancestralmente se conformam com um amanhã nem melhor nem pior do que o hoje, que importância tem que o poder alastre até ao mais clamoroso dos abusos? Que não se prestem contas sobre nenhuma atitude, nenhuma escolha, nenhuma decisão? Ou que elas sejam tão irresponsáveis quanto fazer três novas faculdades de Medicina no país ou tão aterradoras quanto a partir de agora “condenados por ódio possam ser expulsos de várias profissões”? Ou que a Lei do Digital contenha um artigo inconfundivelmente assassino? Não tem importância nenhuma. Ou muito pouca. A vida segue, ate já foi pior, houve um Verão de praias e campos cheios e o país até acha que a pandemia o deixou de vez.
2 Parece-me isto tão verdade, quanto julgo, aliás, que uma grande maioria dos portugueses desconhece o desnível entre o que se paga pelo trabalho em Portugal e no resto da Europa – os sindicatos já não são o que foram. Quem, porém, nota esse fosso, pouco reage e pouco se indigna, o Estado é um porto de abrigo; e quem se apercebe, se puder, foge a sete pés. Foge: qual é o pais da UE onde se fica obrigatoriamente em casa dos pais ate aos vinte ou trinta e tal anos porque o salário não “dá” para arrendar casa, investir no estudo, aprofundar o conhecimento, casar, ter mais do que um filho e meio? Ou remunerações que permitam enfim melhor vida do que uma letárgica cepa torta onde o fisco até os cêntimos poupados leva? Fogem, sim.
E quem fica vai vivendo a vidinha pendurado no único e ultimo seguro de vida, o obeso, envelhecido, inoperante e incumpridor Estado português. Uma gigantesca bolha superlotada de funcionários que “desfuncionam “ – filas, atrasos, incumprimentos, burocracia, corrupção – em vez de servir. E mesmo sendo a inoperância estatal directamente proporcional ao número dos seus funcionários públicos, paciência, os Portugueses não se importam. Pelo contrário: é ali que reside a sua desencorajante maior ambição. E por isso ouvem com júbilo o hino do “Estado social” sem lhes passar pela cabeça a prosaica pergunta de quem o pagará e como. Tanto faz, logo se verá. E agora que o futebol voltou aos estádios e que as televisões generosa e abundantemente depositam nos lares portugueses mais debates sobre bola, não há razões para grandes queixumes. Até a pandemia “parece” que está a acabar, é só esperar mais um bocadinho que o Almirante, novo santo padroeiro português, acabe a sua tarefa. Aliás, o tão audível aplauso nacional para alguém que se limitou a cumprir eficazmente um programa – os Portugueses normalmente não cumprem nem programas, nem prazos – chegou a ser embaraçante. Tão embaraçante que levou até um aprumado militar a ter de nos explicar que “não irá para a política”. (Sr. Almirante, com todo o meu enorme respeito, não era preciso tanto, ficaríamos assustadíssimos com a ideia).
3 De modo que é isto: país pobre, velho, acomodado, onde se nasce pouco, se ambiciona menos e se sonha nada. Já não foi assim, um dia talvez volte a não ser. Ate lá – se houver “lá” – é dificil lidar com semelhante estado de coisas. E se repararmos, são mesmo todas as coisas: a Educação à cabeça – a mais grave das questões nacionais -, a Justiça, sempre a tropeçar em atrasos, incapacidades e abusos – a lesiva ineficiência da administração pública; a banalidade da corrupção vigente; a despudorada proteção de um sector da população – o funcionalismo público – versus a fria indiferença face ao outro e, a propósito, note-se apenas a quantidade de gente que entrou para os quadros da Educação e a quantidade de alunos que saíram ou não entraram? E por aí fora. Não, caro leitor, nada disto é exagero, fado ou fatalismo. É uma cansada constatação.
Por exemplo: experimente ler a nova versão da História do país nos actuais manuais escolares; experimente pedir uma licença ao Estado seja para o que for; experimente entrar numa repartição e sair de lá sem o terem mandado para mais três ou quatro outras repartições, chegando a casa sem o problema resolvido; experimente tratar de um assunto que o obrigue a mergulhar no pavoroso universo da Justiça; experimente apresentar um novo projecto às “autoridades” e veja a trama de burocracia onde o enredarão, e o tempo e o dinheiro que perderá. Experimente ir a um centro de saúde, ou marcar telefonicamente uma consulta ou entender-se com as novas regras da ADSE… e veja o que lhe acontece. E, já agora, experimente alertar o Primeiro-Ministro para a indecência dos nossos impostos ou convencer um membro do Governo de que os criadores de riqueza, os grandes, pequenos e médios empresários, os grandes, pequenos e médios exportadores não comem crianças a hora nenhuma, amam Portugal e não são corruptos. Não consegue nem uma coisa nem outra, pois não? E se lhes pedir que lhe expliquem porque adoram distribuir dinheiro e detestam produzir riqueza, ou como vão fornecer sustentabilidade à segurança social, não lhe responderão, pois não? Ou que ao menos uma vez por outra troquem a ideologia pelo interesse nacional, também não vai lá, pois não?
Ou seja, no fim deste triste enunciado, em vez de me chamar fatalista ou reaccionária (e sou ambas as coisas, graças a Deus) é capaz de me dar razão.
4 Foi neste quadro desolador que há dias, a Sul, António Costa, nos mostrou que era capaz de tudo. Podia-se pensar que temeria o penoso espectáculo da desfaçatez pública, da exibição do seu sulfúrico uso do poder, do ridículo até, mas não. Ou sequer das consequências que pudessem advir de tão politicamente vazio “one man show (mas é a tal coisa, os Portugueses não se importaram por ai além: que tinham eles a ver com aquele entediante Te Deum interno?).
É isso, sim: ainda evocarei aqui hoje o congresso socialista, tal a impressão deixada.
5 Ao princípio pareceu-me aquilo uma reunião de veraneantes, a cem metros da toalha de praia de cada um. Um congresso naquele mês e naquele lugar nem podia ser sério, nem a sério. Nem politicamente competitivo nas ideias, nas escolhas, no debate, nas intervenções. Depois houve a meticulosa encenação – do palco aos gestos, passando pelas palavras, actos e omissões – e a encenação alertou-me para o lugar que a alta comédia ali teria. A do poder. Do poder e do seu jogo que pode ser cruel ou magnânimo, mas ali me pareceu um poder sobretudo feio: nem dignidade nem distinção para aquele quarteto supostamente sucessor do chefe. Uma armadilha. Sentados involuntariamente à mesma mesa só faltou meter as duas senhoras e os dois cavalheiros numa gaiola de vidro para que a sua também involuntária exposição se tornasse ainda mais desconcertante e infelizmente (para eles) risível. Sucessores?
E finalmente, last but not the least… a política. Onde esteve, quem a serviu, que nos anunciaram com ela, que bom uso ali lhe deram em nome do país que governam? Exit política (não se pode chamar política à permanente exaltação do país das maravilhas com algumas vagas intenções governativas pelo meio). Os promotores preferiram-lhe uma constrangedora auto-celebração norte-coreana. Sintomaticamente, ninguém estranhou, ou se importou, ou se envergonhou.
6 Aqui chegados, só sobra uma pergunta: que quer António Costa? Fazer o quê com o poder que tem? Que entendimento tem do seu uso, para que quer ele que ele lhe sirva?
Achará, porventura, o líder do PS que nos trouxe política? Que nos seduziu ou convenceu politicamente ali? Que nos disse para além da contínua escalpelização do Plano de Resiliência e Recuperação e da sua previsivelmente desgraçada aplicação ou dos sempre reeditados elogios ao comportamento das autoridades estatais da saúde na pandemia? Pouco. E por isso inquietou-nos.
Como já nos inquietara, quando aqui há tempos, diante da presidente da UE exibira um europeísmo de oportunidade com a sua pressa de ir ao banco. Que europeísta é ele, afinal, com os louvados pergaminhos que lhe atribuiem? É o Primeiro-Ministro um dos “mestres-de-obras” de uma Europa unida, politicamente forte, com voz audível e influência real ou permitimo-nos desconfiar que o chefe do Governo português e o país são prioritariamente uns pedintes europeus?
P.S.: Há um bom par de anos, Vasco Pulido Valente costumava dizer que “o mundo estava perigoso”. Não sei se seria capaz de adjectivar hoje o perigo em que vivemos.