Há cento e catorze anos, um fabricante de pneus decidiu que precisava de vender mais pneus, mas, como o carro tinha sido inventado há pouco tempo, não havia muitos carros que precisassem de pneus. O fabricante de pneus precisava que os franceses comprassem mais carros. O que é que poderia pôr os franceses a comprar mais carros? A solução era óbvia: o almoço. E o fabricante de pneus resolveu, genialmente, compilar um guia dos melhores sítios para almoçar no país, que deram grátis aos donos de carros. Quer dizer o guia, não os almoços. O Guia Michelin nasceu.
Não tenho nada em particular contra o Guia Michelin. Se um gang de snobes culinários desejam escrever e compilar um guia das comidas mais caras e sobre-complicadas do mundo, debaixo de um logotipo representando um homem gordo tipo “marshmallow”, para espalhar o seu snobismo e manter vivo o comércio mundial de onanismo gastronómico, tudo bem.
Também não tenho nada em particular contra comidas sobre-complicadas. Bem: tenho, em particular, uma coisa contra borrões de molho arrastados ao longo do prato, e aquela espuma que parece algo que voltou a sair do cão depois dele comer relva, e a comercialização do snobismo puro — mas além dessas coisas, não tenho nada em particular contra a cozinha exclusiva, adornada e francesificada, nem contra um guia dedicada a ela.
Afinal, é só um guia.
Porque é que, então, Portugal (ou a Espanha, ou o Reino Unido, ou o Japão ou qualquer outro sítio) liga tanto às estrelas Michelin? É um guia francês, com éticas de comer francesas. Porque é que há tanta festa quando Avillez, Lemos e companhia mantiveram ou ganharam estrelas no último “Guia Michelin: Espanha e Portugal”? Tiveram dez minutos num dos telejornais daquele dia. Dez minutos é muito tempo na hora e meia dedicada a política, futebol e desgraças. Dez minutos é uma festa nacional de tempo de antena num telejornal.
É um guia francês, dedicado ao ideal francês de comer.
Claro que é uma grande notícia para os “chefes” e os seus investidores. Uma estrela (ou, melhor ainda, três) é fantástica para o negócio: vai sempre haver gente suficiente para manter uma mão cheia deles em batas brancas, embora eu aposte que alguns sofrem insónias com a preocupação de um dia perderem a estrela. Deve ser duro.
Mas por que razão o embaixador Francisco Seixas da Costa ficou cheio de comichão em público só pelo facto de Portugal ter 17 estrelas face às 203 estrelas da Espanha, gritando que era “um escândalo”. Não percebo porquê, a sério, e pareceu-me uma cena bastante embaraçosa.
Devíamos, ao contrário, ter muito orgulho no facto de não termos muitas estrelas Michelin. Não estou a menosprezar os grandes chefes que as têm. Uma vez tive a sorte de comer num restaurante do Avillez e ele é, de facto, um “chefe” maravilhoso, tal como, tenho a certeza, todos os outros estrelados. Mas Portugal não precisa de se agitar e emocionar por ter estrelas Michelin e cozinha afrancesada, nem precisa de se indignar só porque não tem tantas estrelas como o vizinho do lado, e isto porque Portugal devia ter orgulho no facto de que simplesmente não precisa de estrelas que idolatram a cozinha de tipo francês.
Gostaria que Portugal (e Espanha, e o Reino Unido, e Japão e todos os outros lados) deixasse de satisfazer o ideal francês e lembrar-se que pode cozinhar e fazer impressões boas sem confeccionar comidas que parecem francesas. Pirâmides e pintas, borrões e montinhos, cones e chuviscos arranjados em pratos não são mais portugueses ou menos franceses só porque as pirâmides são feitas de alheira e os borrões de um “jus” de chouriço de porco preto. Os franceses, numa maneira ou outra, conseguiram dominar o mundo culinário durante tanto tempo que ninguém questiona a sua autoridade, e embora os autores do guia da Espanha e de Portugal sejam ibéricos, estão rendidos ao ideal francês.
Portugal, sê orgulhoso. Talvez seja a altura de um fabricante português de pneus começar a publicar o seu guia dos melhores restaurantes e almoços do país… e depois, do mundo. Alguém por aí é fabricante de pneus?
Nota de rodapé: Deixem-me antecipar os comentários mais óbvios: Sim, sou britânica, mas não odeio os franceses, e, sim, sei cozinhar. OK?
(traduzido do original inglês pela autora)
Stuff Michelin stars
A hundred and fourteen years ago, a tyre manufacturer in France decided that it needed to sell more tyres, but, as the car had only just been invented, there weren’t very many cars that needed more tyres. The tyre company needed the French to buy more cars. What would get the French buying more cars? The obvious answer was lunch, so they came up with a genius plan, a guide to the best lunches around the whole country, which they gave free to car owners. The guide, that is, not the lunch. The Michelin Guide was born,
I have nothing in particular against the Michelin Guide. If a gang of food snobs want to write and collate a guide to the more expensive over-complicated food of the world under the banner of a fat marshmallowy Michelin man logo that belongs in the mechanics’ garage, broadcast their food snobbery, and keep the worldwide trade in mutual gastronomic onanism alive and well, that’s fine by me.
Nor do I have anything in particular against over-complicated food. Well, I do, in particular, have a thing about streaks of gravy artistically dragged across a plate, and that foam stuff that resembles what the dog brings back up when it has eaten grass, and the commercialisation of unadulterated snobbery, but apart from those things, I have nothing in particular against over-complicated, fancified, frenchified exclusive cookery and a guidebook written about it.
I mean, it’s just a guidebook, after all.
So why on earth does Portugal (or Spain, or the UK, or Japan, or anywhere, for that matter) give a damn about Michelin stars? It’s a French guidebook with French eating ethics writ large all the way through it. Why on earth is such a celebration made about Avillez, Lemos et al keeping and gaining their stars last week in the latest Michelin Guide: Spain & Portugal? They got ten whole minutes on the lunchtime news. Ten minutes is an awful lot in a mere hour and a half dedicated to politics, football and mishaps. Ten minutes is a national party’s worth of airtime.
It’s a French guidebook, dedicated to a French ideal of eating.
It’s great news for the chefs and their investors, of course. A star or two is great for business since there will always be enough people in the world to keep the relative handful of them in smart whites, though I bet they have sleepless nights, worrying that one day they might lose a star. That must be the worst thing, like, ever.
Why did Francisco Seixas da Costa get his knickers publicly in a twist about the fact that Portugal has only 17 stars next to Spain’s 203, calling it a scandal? What on earth does it matter? And, really, how embarrassing.
We should be proud to have not very many Michelin stars. I’m not knocking the great chefs who have them. I have been lucky enough to eat once in an Avillez restaurant and he is, indeed, a marvellous chef, as, I am sure, are all the rest of the “starred” chefs. But Portugal needn’t get so embarrassingly excited and thrilled about having Michelin stars and frenchified cooking, or indignant about not having as many as next door has, because Portugal should be proud of the fact that it simply doesn’t need stars that idolise French cookery.
I wish Portugal (and Spain, and the UK, and Japan, and everywhere else, for that matter) would stop pandering to the French ideal and remember that it can cook to impress without concocting French looking food. Pyramids and drizzles and spots and cones and streaks and piles arranged on a plate aren’t more Portuguese and less French just because the pyramids are alheira and the streaks are made of a jus of chouriço de porco preto. The French have somehow dominated and domineered the culinary world for so long that hardly anyone questions their authority, and though the collators of the guide may be Iberian, they have been taken in by the French ideal.
Portugal, stand up for yourself. Maybe it’s time for a Portuguese tyre company to start its own guide to the best lunches in the country… and then the world. Anyone out there have a tyre company?
Footnote Let me pre-empt you: Yes, British, but don’t hate the French and can cook, goddit? OK.