Há pouco mais de um ano “cem pessoas negras” — fizeram questão de se identificarem assim — assinaram uma carta aberta, intitulada “Não a um museu contra nós!”, cuja principal finalidade era dar conta da sua total oposição à criação de um Museu dos Descobrimentos. Em contrapartida, muitas das que subscreveram a referida carta aberta, nomeadamente Beatriz Gomes Dias, fundadora e presidente da Djass – Associação de Afrodescendentes e candidata pelo Bloco de Esquerda às próximas eleições legislativas, queriam um Museu da Escravatura e um memorial que lembrasse e homenageasse o sofrimento dos escravos africanos.
Aparentemente os signatários da carta estão a levar a água aos seus dois moinhos. Porquê? Em primeiro lugar porque há cerca de dois meses Catarina Vaz Pinto, a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, veio dar conta da próxima criação, no Campo das Cebolas, de um memorial destinado a homenagear os africanos que foram escravos de portugueses, o que é boa ideia, acoplado a um Centro Interpretativo da Escravatura — ou seja, um pré ou mini-museu da escravatura —, o que é uma ideia menos boa, como já expliquei num artigo anterior, sobretudo se nesse Centro estiverem activistas políticos com interpretações pré-fabricadas em vez de pessoas que saibam interpretar e contextualizar historicamente o tráfico transatlântico de escravos e a escravidão.
Em segundo lugar porque enquanto tudo isto se vai desenvolvendo não se vê sequer um primeiro esboço, uma primeira pedra, um primeiro átomo, do planeado e prometido Museu dos Descobrimentos, venha ele a ter essa designação ou outra. Será que o presidente da Câmara de Lisboa, que o prometeu, e o próprio primeiro-ministro, que confirmou a promessa, se terão encolhido para não desagradar aos signatários da carta aberta, aos académicos que estão contra o projecto e à extrema-esquerda que se agita dentro e fora do PS? Não sei dizer. O que sei é que nunca mais se ouviu falar em Museu dos Descobrimentos. Ao que parece ficou adormecido, em ponto-morto ou, pior do que isso, soterrado na inércia ou paralisia que sempre ataca os políticos portugueses quando começam a mexer em coisas que fazem ondas.
No entanto, é perfeitamente incompreensível que um país que tem uma parte importante da sua história firmemente ancorada nos tempos da aventura marítima e multicontinental a que chamamos, de forma mais ou menos rigorosa, a “Era dos Descobrimentos”, se incline a fazer um Centro Interpretativo sobre escravatura, a parte mais sombria e horrível do seu contacto com África e com as Américas, mas se coíba de tratar, também, da parte luminosa, benevolente e esperançosa da sua expansão no mundo. Da única vez em que esteve em Portugal, há 17 anos, David Brion Davis, um historiador unanimemente reconhecido como um dos melhores e mais profundos especialistas em história da escravatura, manifestou desejo de ver o traço dos Descobrimentos na cidade de Lisboa. Mostrei-lhe os Jerónimos, a Torre de Belém (ver foto abaixo) e algumas coisas mais, mas ele estranhou que não existisse no país um grande centro ou museu que, de forma estruturada e condensada, tratasse desses acontecimentos tão importantes e tão decisivos na história colectiva do mundo. Tive dificuldade em explicar-lhe que muitos dos nossos académicos e políticos têm vergonha do passado descobridor e expansionista do país. Consideram que ter orgulho nesse passado é salazarista, retrógrado, lusotropicalista e outras superficialidades equivalentes.
O tempo passou, David Brion Davis morreu, infelizmente, há cerca de quatro meses, e o museu cuja inexistência o surpreendia ainda está por fazer e, se calhar, assim ficará para felicidade da gente que, tendo influência nas actuais soluções governativas da Câmara de Lisboa e do país, o considera inconveniente e politicamente incorrecto. Ora, não é, a meu ver, aceitável que grupos de pressão inibam ou impeçam os portugueses, e os lisboetas em particular, de terem um ou vários espaços museológicos que mostrem ao público residente e a quem nos visita o que foi a aventura de coragem e de persistência, de abnegação e de benevolência, de descoberta e de avanço científico e tecnológico que designamos geralmente por “Descobrimentos”.
Essa aventura teve crueldades, iniquidades, violências? Teve, como a aventura de todos os outros povos, mesmo a daqueles que os politicamente correctos, nos seus delírios cor-de-rosa, fantasiam como irrepreensivelmente pacíficos e altruístas. Nenhum desses aspectos negativos deve ser rejeitado, ignorado ou escondido num futuro tratamento museológico do que foi a expansão portuguesa do século XV em diante. Mas para que se chegue aí, para que se chegue ao momento de poder mostrar de uma forma enquadrada e equilibrada o positivo e o negativo, o admirável e o condenável, da história da expansão dos portugueses no mundo, será preciso que os que não se envergonham da palavra e do acontecimento “Descobrimentos”, e consideram que ele merece um museu, se unam e insistam com os poderes públicos no sentido de levar esse empreendimento por diante. De outro modo o Museu dos Descobrimentos ficará para sempre em águas de bacalhau, afogado nos remoinhos da eterna culpa do homem branco.
João Pedro Marques é historiador e romancista