Li esta semana em Human Archipelago, de Teju Cole e Fazal Sheikh: “Considero cidadãos todas as pessoas sujeitas a um poder soberano e a cidadania como as obrigações que os cidadãos reconhecidos como tal têm para com os cidadãos que não são reconhecidos como cidadãos”. A afirmação de Teju surge lado a lado com uma imagem de três mulheres, talvez no Sudão: duas delas seguram chapéus de chuva e estão de pé. No meio delas, uma terceira mulher está sentada, como se tivesse cabido às amigas protegerem-na do sol. As palavras continuaram em mim e levaram-me a um dos livros da minha vida, de Michael Dummett, On Immigration and Refugees (Routledge, 2001). Li aí, pela primeira vez, acerca da forma como não temos apenas deveres negativos em relação aos estranhos: “As pessoas a quem são negadas as condições mínimas para uma vida livre de terror têm direito a pedir ajuda a outras pessoas para que lhes dêem essas condições”, afirma Dummett. “Negá-lo”, continua, “seria defender que apenas temos deveres negativos em relação aos estranhos: que, por exemplo, não os podemos matar, mas que não temos o dever de os proteger de serem mortos”.

Human Archipelago (Steidl, 2021) é um estudo de imagem e texto à volta das perguntas “Quem é o meu vizinho? Quem é o meu semelhante?”. O breve tratado de Dummett, professor emérito de Lógica em Oxford (1925-2011), resume uma vida de activismo de trinta anos a favor de condições justas para os imigrantes e os refugiados na Grã-Bretanha. Cole e Dummett convergem na mesma ideia, a de que a própria definição da nossa cidadania depende da forma como tratamos os cidadãos a quem não são reconhecidos os mesmos direitos que temos. As nossas obrigações para com os estranhos não se resumem a um catálogo de deveres negativos, não se resumem ao que não podemos fazer-lhes: temos para com pessoas a quem não são reconhecidos os mesmos direitos de que usufruímos um dever de entreajuda e de auxílio, entre vários outros deveres positivos.

Cole demora-se nas caras fotografadas por Fazal. Às vezes, as caras e os corpos foram deformados pela guerra, ou por graves acidentes. E, nesses momentos, o escritor pergunta-se: o que é uma cara? O que conta como uma cara humana? O que pode um rosto? Até que ponto ter uma cara depende do reconhecimento da cara do próximo? Dummett alude à parábola do Bom Samaritano como resposta por excelência à pergunta ‘Quem é o meu semelhante?’ — e lança esta ideia: “Mas se toda a gente tem direito a viver no seu país de origem, então, por conseguinte, toda a gente tem o direito de viver em algum lugar”. Esta conclusão serve a Dummett para defender que um cidadão impedido de viver no seu país tem o direito de requerer ser aceite noutro país. Human Archipelago justapõe caras e histórias: o menino com cara de homem, de inocência perdida, a mulher sem nariz. Uma mão calejada surge lado a lado com a história de um imigrante do Mali que salvou seis vidas durante um ataque terrorista. Cadáveres são sucedidos por poemas que são sucedidos por expressões de desafio. “A cara do outro é a cara de Deus”, escreve Teju Cole, e na página ao lado vemos uma mulher de costas, de cabelo apanhado, rosto oculto.

Perante a imensidão dos problemas do presente e diante da escala da vida prática, política e pública, por vezes questiono-me o que adiantam os pequenos livros. Para que servirá um livrinho como o de Dummett diante das guerras que nos cercam? A quem informará o pensamento de Cole e Fazal? As pessoas que fazem livros importantes colocam-se esta pergunta com mais frequência do que as pessoas que fazem livros pouco importantes. A dúvida advém do facto de que, quando escrevemos, nos sentimos a falar sozinhos, numa sala insonorizada, na qual ninguém nos ouve. E, contudo, são sempre os livros que encenam as conversas com os estranhos para as quais na vida nos falta a coragem, e são eles também os primeiros lugares onde aprendemos a não estranhar o acto de ajudar. Folhear estes dois livros é subir ou descer a Almirante Reis.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR