O Programa do XIX Governo previa a reestruturação das indústrias da defesa, visando a sua sustentabilidade e privatização. Este propósito já constava no Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) 2010-2013 que, para esse fim, preconizava quatro processos de alienação, a saber: Estaleiros Navais de Viana do Castelo, S.A. (ENVC), EDISOFT – Empresa de Serviços e Desenvolvimento de Software, S.A., EMPORDEF — Tecnologias de Informação, S.A e EID – Empresa de investigação e Desenvolvimento de Eletrónica, S.A.

No contexto da conclusão do ciclo de privatizações, que conduziu à alienação parcial de participações sociais na EDISOFT e EID – que passaram a ser empresas privadas com capitais públicos (e onde o Estado passou a ser minoritário, sem funções de gestão corrente) –, à subconcessão dos ENVC, e não tendo havido interessados na aquisição da EMPORDEF TI, em 2014, deu-se início à liquidação da holding das indústrias da Defesa, EMPORDEF, S.G.P.S., S.A., cuja atividade consistia na gestão das participações sociais detidas pelo Estado em sociedades ligadas direta ou indiretamente às atividades da Defesa.

Importa recordar que as decisões de privatização das participações sociais detidas pela EMPORDEF e sua subsequente liquidação, resultaram do acordo feito com a Troika e, para tal, através da Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 42/2014, que expunha a situação calamitosa da empresa – um resultado líquido consolidado de 57,2 milhões negativos, um total de capital próprio consolidado de 73,9 milhões de euros negativos e um passivo consolidado total de cerca de 827 milhões de euros, nos quais se incluíam 200 milhões de euros de financiamento obtido de curto prazo – situação que foi determinante para o início do processo conducente à dissolução e liquidação da empresa.

Por sua vez, a RCM n.º 50/2015, de 17 de julho, para além de indicar um prazo de 120 dias para a liquidação e que os direitos e responsabilidades remanescentes da EMPORDEF seriam transferidas para o Estado, via Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), também determinou um prazo de 15 dias para a dissolução da EMPORDEF e que na sua liquidação e extinção fossem seguidas estas linhas de orientação:

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  • Promover a dissolução da DEFLOC – Locação de Equipamentos de Defesa, S.A., e da DEFAERLOC – Locação de Aeronaves Militares, S.A., no prazo máximo de 30 dias;
  • Proceder à reorganização das participações do núcleo naval, mediante a transferência para a Arsenal do Alfeite, S.A., da participação no capital social da Navalrocha – Sociedade de Construção e Reparações Navais, S.A.;
  • Proceder à transferência para o Estado, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, da participação no capital social da IDD – Plataformas das Indústrias de Defesa Nacionais, S.A.;
  • Concluir o processo de venda da participação na EID, S.A., cujas receitas seriam afectas ao reembolso das dívidas da EMPORDEF, nomeadamente perante a Arsenal do Alfeite, S.A.;
  • Concluir o processo de liquidação e extinção da ENVC, S.A., no prazo de 90 dias, a contar da data da publicação da presente resolução, prorrogável nos termos legais;
  • Promover a alienação dos imóveis disponíveis para venda.

Ora, a 30 de dezembro de 2019, quatro anos, cinco meses, uma semana e seis dias depois, já sob a égide do governo de António Costa, a EMPORDEF continuava em processo de liquidação, conforme é exposto no Despacho n.º 786/2020. Neste despacho também se definiu a reestruturação da IDD – Plataforma das Indústrias de Defesa Nacionais, S.A. (desde 29 de junho de 2020, IdD – Portugal Defence, S.A.) que na prática passou a ser uma holding, tendo assumido, entre outras, todas as participações da EMPORDEF que deveriam ter sido objecto de dissolução, liquidação, extinção e/ou venda. Miraculosamente, em 24 horas, foi registado o encerramento da liquidação da EMPORDEF [verificável no anexo 2 do relatório e contas da IdD, SA, 2019 (na página 84)].

É muito provável que tenha sido a DGTF, como acionista, a assumir todos os encargos financeiros, mas o montante dos mesmos é desconhecido. Isto é o que se sabe:

  1. Apesar da liquidação da holding EMPORDEF ter sido iniciada em 2014, em 2019 continuava por concretizar;
  2. Em 2020, foi criada uma  nova holding IdD – Portugal Defence, S.A., que passou a deter, através de aumento de capital em espécie, as seguintes participações detidas pelo Estado, algumas minoritárias, no sector da Defesa:
    1. OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, S.A.;
    2. Arsenal do Alfeite, S.A.;
    3. Navalrocha – Sociedade de Construção e Reparações Navais, S.A.;
    4. EEN – EMPORDEF Engenharia Naval, S.A.;
    5. EID, S.A.;
    6. EMPORDEF TI, S.A.;
    7. EDISOFT, S.A.;
    8. Extra – Explosivos da Trafaria, S.A.;
  3. Do conjunto das participações sociais que migraram para a nova holding, encontram-se as detidas pela EMPORDEF, designadamente, as empresas cujos processos de privatização estiveram previstos no PEC 2010-2013 e no Programa do XIX Governo, mas que acabaram por não se concretizar.
  4. Tudo indica que o aumento de capital em espécie seja equivalente a 104 milhões 450 mil euros porque o capital social da IdD, S.A., aumentou de 50.000,00 € para 104.500.000,00 €.

É indesmentível que o XXI Governo não deu continuidade aos processos de privatização do sector da Defesa, previstos or José Sócrates e encetados por Pedro Passos Coelho, processos esses que poderiam ter minorado o impacto de encargos financeiros para o Estado.

Aliás, na linha da experiência passada, o que se verifica é que a “nova” holding mantém os maus hábitos herdados, sendo impossível ignorar que as empresas entretanto privatizadas apresentam uma situação estável, ao mesmo tempo que as empresas que se mantiveram sob gestão estatal, exibem significativas fragilidades, como é notícia, no caso do Arsenal do Alfeite, onde a tesouraria e a falta de encomendas fazem perigar o pagamento de salários e de fornecedores.

Acresce que o escrutínio sobre a liquidação da EMPORDEF continua a exibir elevada opacidade. Aos dias de hoje, não é possível saber qual o prejuízo que o Estado assumiu com a liquidação da EMPORDEF. O apoio técnico da função acionista do Estado (DGTF-UTAM) não divulga a informação sobre estes processos, nem sobre o Sector Empresarial do Estado, datando de 2015 a última informação disponível. Estranhamente, também a instituição superior de controlo, o Tribunal de Contas, que zela pela boa gestão dos dinheiros públicos, não tem apresentado qualquer resultado de auditorias sobre a dissolução e liquidação de empresas públicas, remontando a março de 2005 (relatório n.º 13/2005 – 2ª secção) o último trabalho feito a este nível.

Porém, isto é apenas uma parte do labirinto – um sinuoso e opaco labirinto deliberadamente construído para dificultar a accountability do Estado. Tudo isto está a ser conseguido com a complacência das “pessoas de confiança”, nomeadas e colocadas pelo Governo, nas entidades reguladoras e controladoras do Estado. O Governo chama a isto transparência. Eu classifico como obscurantismo ou capitalismo de compadrio.

Transparência é permitir que qualquer informação sobre a gestão do Estado esteja acessível a qualquer cidadão a qualquer momento.

Por essa razão é imperioso que o governo responda a estas questões:

  • A EMPORDEF foi ou não liquidada?
  • Há um registo de liquidação. Foi executado?
  • Tendo sido, quanto custou ao Estado?
  • Se não foi concluída a liquidação, qual o valor do passivo actual da EMPORDEF?
  • Quem são os seus credores, e qual o montante em dívida aos bancos?
  • Por curiosidade, de todas as empresas referidas, a única que se manteve sob gestão pública foi a Arsenal do Alfeite, S.A. Qual é situação actual desta empresa?