Este texto não é sobre geopolítica, não é sobre religião, não é sobre disputa de território, não é sobre raças, não é sobre políticos nem líderes mundiais, não é sobre dinheiro, não é sobre crenças, não é sobre poder. Este texto não é sequer um juízo de valor nem uma apreciação crítica sobre o que está certo ou errado. Este texto não tem como propósito escolher o lado certo da guerra. Este texto é imune a crenças ideológicas, por mais que o ser humano, que tantas vezes precisa de um pêndulo identitário, queira amarrá-lo a uma crença, a uma ideologia, a uma raça ou até a um estado de espírito.

Este texto é apenas um desabafo humano, um relato do ridículo, uma reflexão parca sobre o sarcasmo, sobre a hipocrisia que nos inunda a todos. Ela, que nos impinge com a sua sabedoria cega, que recebemos através do calor dos nossos confortáveis sofás. É de lá, desses sofás seguros, que tantos escolhem, com uma clareza de meter inveja, o lado da guerra que querem apoiar. É dos sofás que avaliamos o grau de “terrorismo” que existe em cada um. Para uns, Netanyahu está a fazer tudo o que deve ser feito para combater o Hamas. Para outros, o governo de Israel já passou da linha e já se transformou, também ele, em terrorismo. A linha que delimita o aceitável quando se trata da guerra é um fenómeno interessante, porque é ténue e esbate-se com facilidade, para além de ser volátil a inúmeros acontecimentos. A linha esbate-se com o tempo, com uma palavra, com a emissão de opiniões tão efémeras que voam com o vento. A linha que divide estes fenómenos é fraca, inconsistente e cada vez mais desumana.

Falar do sofrimento nem sempre é mediatismo forçado nem engodo para os media. Infelizmente, falar de sofrimento é necessário, porque facilmente se deixa de falar dele com a seriedade que o mesmo pede. E é de uma comicidade extrema, mas triste, o barómetro que inventámos para o sofrimento dos outros. Quando alguém lamenta o sofrimento dos inocentes civis israelitas, logo vem alguém lamentar ainda mais o sofrimento dos inocentes civis palestinianos. Se alguém chorar pelos palestinianos, logo vem alguém perguntar porque não chora também pelos israelitas. São os polícias do sofrimento, a medir ao milímetro as lágrimas que deitamos por uns e por outros. Que divertido tem sido gritarmos uns com os outros, dos nossos sofás, sobre o sofrimento de dois povos.

Vou contar uma história um pouco desinteressante. Há uma semana, estive de férias em Itália. Ia a andar na rua, estava de sandálias e, por azar, tropecei num ferro que me abriu um pequeno buraco no pé. Naquele momento, fiquei assustada, não gostei da sensação e impressionou-me particularmente porque o buraco no meu pé era exactamente do formato do ferro em que tinha tropeçado. Por momentos não soube o que fazer, um local chamou uma ambulância. Deram-me uma vacina para o tétano por precaução, antibiótico, raio-x, todos os cuidados a que tinha direito e mais alguns num hospital público que me impressionou positivamente. Conclusão da história: ficou tudo óptimo e nunca mais vou dar importância a este dia, foi apenas um daqueles dias que apelidamos como “chato”.

Já sentada no carro, entrei em monólogo comigo mesma “este buraco no meu pé não era nada e mesmo assim eu fiquei nervosa… que assustador que deve ser ter um buraco mesmo grande, que assustador que deve ser ver uma parte de nós amputada, que horrível que deve ser… que assustador que deve ser não ter ninguém a quem recorrer… hoje deram-me tudo e eu sobrevivia sem nada disto…”. Virei-me para a pessoa ao meu lado e disse “já viste que eu fiz uma ferida da treta, mas tive estes cuidados todos, eu fiquei assustada por um segundo, mas nunca vou levar isto para a vida… nós nem sabemos a sorte que temos, eu nem quero imaginar o que é levar com uma bomba, sentir na pele e no corpo um buraco mesmo grande…”.

Este texto é sobre o que eu senti depois de ter vivido uma história muito desinteressante. Se o que eu senti foi tolo ou melodramático para alguns, acho que pouco importa. Hoje ainda estamos todos aqui, nos nossos sofás, cada um a julgar peças de puzzle de um mundo tão complexo. Este texto talvez seja uma pergunta sem resposta sobre o que sentimos quando deixamos de lado essas coisas intelectuais e muito inteligentes, como a política, a religião, o território, a economia, o poder. Será que ainda sentimos coisas que nos devolvam a humanidade que deixámos tão facilmente de ver nos outros?

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