Se você olhar atentamente, verá que o ambientalismo é na verdade um remapeamento dos mitos e crenças tradicionais judaico-cristãos para o século XXI. […] Somos todos pecadores, fadados à maldição da morte, a não ser que procuremos a salvação, que é chamada hoje de sustentabilidade. A sustentabilidade é a salvação na Igreja do meio-ambiente. Tal qual a comida orgânica é a comunhão, a hóstia sem pesticidas que as pessoas certas, com as crenças certas, põem à boca.”
(Michael Crichton, O ambientalismo como religião)

O lobo mau e os três porquinhos”, “Pedro e o lobo”, “Capuchinho-vermelho”, “O livro da selva”, etc., histórias que todos conhecemos e que refletem um rico e ancestral legado cultural. Com efeito, o Lobo ocupa um lugar central no imaginário dos povos do hemisfério norte que com ele conviveram, incluindo Portugal e Espanha, terra do Canis lupus signatus, o Lobo-ibérico.

Percorrendo tal legado, rapidamente nos damos conta de como é fértil: os deuses gregos Zeus e Apolo eram “nascidos da loba”, não faltavam povos “filhos de lobos” (Hirpinos, norte de Itália – “lobos”; Hircânia, sul do Mar Cáspio – “país dos lobos”; Tu-Kiu, Ásia Central – filhos de um lobo; Dácios, Cárpatos, chamados “Daoi” – “semelhantes a lobos”, etc.), incluindo os famosos fundadores de Roma, Rómulo e Remo, filhos do Deus da Guerra, o Deus-Lobo, Marte, e que foram alimentados pela Loba do Capitólio (o Deus Marte era celebrado com o sacrifício de um lobo). Entre muitas lendas, encontramos por exemplo a nórdica, de Ódin, que amarrou para a eternidade Fenrrir, Lobo filho do génio do mal Loki, ou a lenda “Okuri-Okmi” do Lobo que guiava os homens perdidos na floresta.

Também Plínio contava que no monte Soracte (Roma), vivia uma confraria de lobos, os Lobos de Sora, conhecidos por dançar sobre brasas. Isto sem esquecer a mais comum e famosa: o Homem-Lobo, de quem já Platão falava e que aparece em inúmeras obras antigas – “os contos de Petrorio”, “Mil e uma noites”, Hécate, a deusa feiticeira, que era uma loba, Macédon, herói da Macedónia, que vestia a pele de um lobo, etc. Mas foi no século XVIII que esta crença mais cresceu, acoplada à expressão “lunáticos” dos hospitais psiquiátricos europeus, e com episódios famosos como o da “Besta de Gévaudan” (por cá, temos a “Besta de Montalegre” ou a “Fera de Castro Laboreiro”). A natureza era temida e interpretada de forma mística. No período medieval, a Igreja circulava Bestiários em que moralizava a criação de Deus. O Lobo era temido, diabolizado, perseguido.

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Até meados do século passado, tínhamos na Península Ibérica uma sociedade maioritariamente agropecuária e uma abundante população de lobos. Contudo, daí para cá, o interior rural esvaziou-se de gente e também de lobos, dependentes, em grande parte do território, dos rebanhos para sobreviver. Pelo que hoje experienciamos uma encruzilhada comum a outros países com lobos: muita gente a querer lobos, sem ter que viver com eles, e poucas que não o querem, mas que são quem tem que viver com eles. E não o querem porque, para quem vive com lobos, o choque é inevitável: há perdas, há lesados e há vinganças. Estes conflitos passam-se no interior profundo, pobre, despovoado, envelhecido e, em tantas facetas, esquecido. Passar quem vive com os lobos para o lado das soluções é fundamental, mas para isso temos que envolver as pessoas, conhecer os seus anseios e limitações, dialogar, sensibilizar, ajudar, implementando ou dando a conhecer várias formas de conciliação.

Com três décadas de atraso em relação a nós, Espanha proibiu recentemente a caça ao Lobo – medida que havia sido adotada com vista a esta conciliação – e o debate tem sido acalorado. Não obstante, a convivência pode ser procurada, e há várias soluções que estão mais ou menos implementadas, e casos de sucesso que atestem as suas valias não faltam, faltando sim atender às falhas e àquilo que podemos fazer melhor, seja no campo da sensibilização (muitas leis, pouco debate ou divulgação), nas indemnizações (dos abusos dos pastores, à morosidade, burocracia e outras dificuldades na obtenção de indemnizações, assim como o próprio valor das mesmas) ou, por exemplo, no controlo de cães vadios (além de propagarem doenças ou de poderem hibridar com o lobo, atacam pessoas e rebanhos).

Não parecia assim haver muito que inventar, todavia… afinal havia!

Na cidade, longe da natureza, e com o desenvolvimento do ensino e da ciência, assim como do ateísmo e, mais recentemente, das preocupações ambientais, uma nova visão do bicho tem emergido. Da criatura malvada, demoníaco comedor de homens, terrível fera, algo que era indiscutivelmente uma mistificação e um exagero, passámos para uma visão da natureza à imagem dos filmes da Disney, com os amigos animais todos em amena cavaqueira reunidos à volta da fogueira, no meio da floresta a contar piadas e a jogar às cartas. Daí que hoje, para muita gente, o Lobo não ataca rebanhos, não é um animal perigoso, a maioria dos relatos são histórias da carochinha, não se aproximam e nunca entram nas povoações, etc. Trocámos os mitos rurais pelos mitos urbanos!

Daí é um salto até chegarmos a um manual escolar asturiano onde encontramos a história, e respetivos exercícios sobre ela, do “Lobo muy bueno”, dócil vegetariano que nada caça ou molesta. É essa a doutrina que queremos ensinar à nova geração? Teremos nós lobos a viver em túneis e a comer bagas vermelhas? Será o Lobo bom comido pela Avozinha Má? Coitado Lobo, peça-chave da ecologia holárctica enquanto super-predador com reflexo em todo o ecossistema (da água dos rios às espécies de flores), no futuro ou vira vegan ou os animalistas – que até já alimentam os seus cães e gatos com rações vegan – não o suportarão…

Se vos disserem que esta visão ridícula é proteção da natureza, não acreditem.

PS: Os meus votos de boas festas aos leitores do Observador.