No início de 2020, sem ter ainda uma noção clara da natureza e potenciais consequências nefastas do novo coronavírus, confesso que me encontrava relativamente tranquilo em relação a um putativo impacto global negativo desse microrganismo. Também, em face da relativa gravidade das epidemias anteriores do século XXI, não pensei que a situação pudesse atingir contornos tão dramáticos.
Assim, num primeiro instante, quando o problema não era, ainda, aparentemente catastrófico, não pensei serem necessárias grandes medidas para além de uma atitude expectante e vigilante.
Contudo, tudo mudou quando vi e ouvi os alertas e relatos verdadeiramente aterrorizadores dos médicos italianos relativamente ao que estava a acontecer naquele país. Nesse momento, todos os meus alarmes interiores soaram e a minha preocupação aumentou significativa e proporcionalmente à seriedade da situação. Apressei-me a intensificar a leitura científica de modo a informar-me o melhor possível acerca do novo vírus e de problemáticas relacionadas (epidemias anteriores e comportamento dos vírus em geral e, em particular, dos respiratórios). Na altura, a informação sobre o novo coronavírus era escassa e existia apenas uma certeza: só um lockdown generalizado poderia conter a propagação viral e permitiria ganhar o tempo necessário para conhecer melhor o vírus e estudar as estratégias mais pertinentes a implementar para mitigar as suas consequências. Era cientificamente consensual (diferente de unânime) a imprescindibilidade dessa janela temporal para: (1) prevenir a saturação do sistema de saúde e apetrechá-lo, na medida do possível, adequadamente para os combates seguintes; (2) planear o desconfinamento através da antecipação de cenários e da elaboração de critérios preventivos objectivos, rigorosos e generalizadamente transparentes e compreensíveis.
Receoso com indícios (ainda que poucos) da existência, por parte de algumas personalidades com poder de decisão e/ou influência, de uma aparente relativização da gravidade da situação, senti-me compelido, por um imperativo de consciência, a enviar uma missiva às demais autoridades, alertando para a necessidade de um lockdown imediato. Mesmo consciente da minha insignificância e da mais que certa inconsequência da iniciativa, não resisti a fazê-lo.
Começamos bem e no dia 18 de março de 2020 (obviamente, não devido à minha missiva) foi decretado o estado de emergência em Portugal. Contudo, depois deste início auspicioso, foi desesperante, sobretudo para quem é minimamente competente em ciência, assistir ao espectáculo que se seguiu: as infelizes considerações sobre as máscaras, a retórica lamentável do milagre português, o prémio futebolístico aos profissionais de saúde, a ausência de planeamento, as decisões inacreditáveis para o período de Natal-Ano Novo ou a desoladora ausência da independência desejável de autoridades de saúde face ao poder político são alguns dos muitos exemplos. Felizmente, várias instituições das mais diversas áreas, públicas e privadas, dentro das limitações existentes, procuraram, autonomamente, tornear responsavelmente as dificuldades e o laxismo vigente (o Hospital de S. João é disso um bom exemplo), menorizando o impacto do desnorte das autoridades.
Lamentavelmente, mesmo perante uma emergência sem paralelo, fomos em muito fiéis aos nossos piores hábitos. Pouco ou nada prevenimos ou antecipámos. Demorámos eternidades a tomar decisões (como, aliás, acontece nas mais diversas áreas; o famigerado aeroporto de Lisboa é disso um bom e vergonhoso exemplo). Andámos nos oito e quando a desgraça se abateu sobre nós em Janeiro de 2021, passámos para os oitenta. Entretanto, perdêramos, durante largos meses, a oportunidade para nos estabelecermos no meio (por onde anda a almejada virtude). Nivelámo-nos por baixo (comparando-nos a países em situação pior ou similar) para justificar que era tudo inesperado e que não somos assim tão incompetentes. Não procurámos (raramente o fazemos), antes, acompanhar os exemplos dos que melhor estavam a lidar com a pandemia. E, por fim, nesta situação limite de aflição não tivemos (pelo menos ainda) o discernimento para, de uma vez por todas, reconhecermos sem tabus as nossas menos-valias culturais e modificá-las.
Depois de um primeiro momento em que um medo adaptativo determinou uma decisão sensata (o lockdown) em face das circunstâncias, progredimos para um laxismo perigoso e fomos, por fim, tomados por um temor quase que paralisante após a catástrofe de Janeiro de 2021. Teremos, porventura, aprendido, finalmente, com os erros? Se sim, a que custo? Quando a esperança já reluzia ao fundo do túnel (com as vacinas, um feito científico absolutamente notável) perdemos, com estrondo, parte do que poderíamos ter evitado perder (vidas Covid, vidas não Covid e muitas vidas dos que permanecem vivos) se tivéssemos adoptado, desde o início, a prevenção e a prudência como os esteios da gestão da pandemia. Depois da hecatombe de Janeiro, passamos para o oitenta, tomados por uma insegurança que nos coloca, por exemplo, como um dos poucos países evoluídos que ainda não iniciou a reabertura das escolas. Numa altura em que os hábitos e os conselhos ditados pela ciência deviam há muito estar estabelecidos e entranhados, possibilitando (juntamente com a vacinação) um regresso prudente, progressivo e tranquilo à “normalidade”, estamos a debater e a delinear pela primeira vez (!) critérios concretos para a situação em mãos. Nenhum de nós, porém, é alheio à responsabilidade do que aconteceu. É certo que não tivemos líderes dignos desse nome. Mas, para além do comportamento irresponsável individual que acompanhou a desorientação dos decisores, a verdade é que somos nós que, reiterada e genericamente, escolhemos democraticamente a incompetência e a incapacidade (salvo devidas e honrosas excepções) para nos representar nas mais diversas instituições e quadrantes sócio-políticos. Ou seja, seleccionamos a mediocridade do nosso próprio seio.
Vivermos secularmente iludidos com o que somos tem sido, de facto, um colossal problema. Tal como alguns dos enfermos que recorrem à psiquiatria, estamos sempre à espera de um resultado diferente sem que modifiquemos o que na nossa forma de ser e de estar nos causa um perpétuo prejuízo e/ou sofrimento. Acresce que os inebriantes e habituais elogios chauvinistas despropositados não têm, também, ajudado. Uma boa auto-estima não se edifica através de um enaltecimento narcísico de virtudes reais (ou conquistas individuais alheias), e muito menos de imaginárias. Uma auto-estima salutar advém da capacidade de reconhecermos (e de viver bem com) as nossas virtudes e defeitos, quer os potencialmente inalteráveis (como por exemplo, os físicos), quer os passíveis de serem melhorados. É importante sublinhar, apesar de tudo, que não somos nem mais nem menos maldosos, digamos assim, do que os outros povos. Não é disso que se trata. A espécie humana tem uma natureza comum e apresenta um espectro caracterial que varia entre o ideal e a sua antítese. Assim, em todas as nações existem seres humanos da mesma índole. Porém, a identidade dos países resulta daquilo que em termos caracteriais e comportamentais é a regra nas suas populações. E a nossa regra tem-nos impedido de termos o país próspero que poderíamos ter (ou, pelo menos, de evoluirmos rapidamente para esse país). A pandemia não revelou nada de novo. Apenas tornou mais evidentes, para quem não se recusar ver, muitas das nossas crónicas fragilidades.
Em suma, se quisermos ser realmente um país melhor, próspero e sólido, temos necessariamente que reconhecer, sem complexos, os nossos defeitos e mudarmos a nossa base cultural caracterial e comportamental colectiva. De outra forma, continuaremos provavelmente como sempre, iludidos e irracionalmente desejosos que, por milagre, 2+2 passe a ser igual a 5…
* Artigo escrito em 9 de Março de 2021