Os observadores internacionais participam no controlo de escrutínios eleitorais para que estes decorram de forma democrática e transparente, mas, no caso da Quirguízia, além de estarem mal preparados, parece que não se preocupam com o facto de a sua opinião legitimar regimes mafiosos e corruptos.
No dia 04 de Outubro, os quirguizes foram às urnas para eleger os seus representantes no Parlamento e, ainda bem antes do escrutínio, havia indícios de que ele iria ficar marcado pela violação das mais elementares regras democráticas, o que se veio a registar. No dia seguinte, logo que foram anunciados os resultados, numerosos manifestantes saíram para as ruas de Bishkek, capital da Quirguízia, para exigir a anulação dos resultados, a demissão do presidente Sooronbai Jeenbekov e a realização de novas eleições.
Segundo a Comissão Eleitoral da Quirguízia, dos 16 partidos participantes apenas quatro ultrapassaram a barreira dos 7%, indispensável para eleger deputados. Deles, os dois partidos pró-governamentais conseguiram conquistar a maioria: “Birimdik” (Unidade) – 24,52% e “Mekenim Kirghizstan” (Quirguízia Natal) – 23,89%. Os partidos da oposição praticamente ficaram privados de representação parlamentar.
Para que se compreenda melhor estas forças políticas, é preciso frisar que o “Birimdik” tem entre os seus dirigentes o irmão mais novo do Presidente Sooronbai Jeenbekov e o “Mekenim Kirghiztan” tem por detrás o clã de Rayibembek Matraimov, um antigo responsável das alfândegas que alegadamente enriqueceu à custa da corrupção.
Além disso, este resultado veio reforçar o controlo do país pelos clãs do Sul do país e afastar ainda mais do poder os clãs do Norte, representados por Almazbek Atambaev, antigo Presidente a cumprir uma pena de prisão por corrupção. Este foi libertado pelos manifestantes, mas novamente detido alguns dias depois.
A onda de protestos obrigou a Comissão Eleitoral a reconhecer as eleições inválidas e a convocar novo escrutínio para 6 de Novembro. O Presidente dirige o país de um lugar desconhecido, existem já dois primeiros-ministros e dois comités coordenadores da oposição. A Comissão Eleitoral constatou que houve “compra de votos” pelos partidos vencedores, alguns a troco de um saco de carvão, tal é a miséria reinante na Quirguízia. Além disso, é evidente que a barreira dos 7% visa impedir que partidos da oposição consigam eleger deputados.
Cabe aqui acrescentar também que a Quirguízia está a ser duramente fustigada pelo COVID-19, mas a ajuda internacional não chega às populações, desaparece nas areias da corrupção, o que faz aumentar o protesto.
Desta vez, observadores internacionais de organizações que frequentemente emitem opiniões contrárias foram unânimes em que se tinham realizado eleições “democráticas”.
O deputado russo Konstantin Zatulin, que dirigiu a missão dos observadores da Organização do Tratado de Segurança Colectiva (OTSC), que engloba países como a Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguízia, Rússia e Tadjiquistão, considerou que as eleições decorreram de forma “democrática e transparente”.
“Assinalando um alto nível profissional de preparação das eleições, os observadores internacionais detectaram algumas insuficiências técnicas no processo de votação em algumas secções de voto que, porém, não influíram no resultado das eleições” – lê-se num comunicado da OSTC.
Verdade seja dita, as conclusões desta missão são frequentemente duvidosas, pois ela é controlada pela Rússia e só aprova os resultados eleitorais favoráveis a Moscovo. Como os partidos vencedores defendem uma integração cada vez maior da Quirguízia na União Económica Euro-Asiática, promovida pelo Kremlin, o resultado foi aceite.
Esta organização achou também “democráticas” e transparentes” as eleições presidenciais na Bielorrússia, cujos resultados são contestados em manifestações de rua pela oposição ao ditador Alexandre Lukachenko há mais de dois meses.
É curiosa, aqui, a posição da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa. Thomas Boserup, vice-chefe da missão de observadores da OSCE considerou que as eleições “decorreram, no geral, bem”, frisando que “a Comissão Eleitoral Central da Quirguízia organizou bem a realização de eleições parlamentares”. Quanto aos aspectos negativos, ele assinalou que “alegações credíveis de compra de votos suscitam sérias preocupações”. Ou seja, deixa no ar dúvidas sobre a legitimidade do escrutínio, mas, em geral, aceita-o.
Os conflitos entre a polícia e os apoiantes da oposição, que se seguiram ao anúncio dos resultados e que provocaram um morto e mais de mil feridos, parecem ter apanhado de surpresa até Vladimir Putin. O Presidente da Rússia, que considera a Quirguízia uma zona de influência sua, reagiu assim a uma pergunta sobre a situação naquele país da Ásia Central: “Mas que dizer. Muito recentemente, realizaram-se eleições para o parlamento. A propósito, elas foram consideradas realizadas e democráticas não só pelos observadores internacionais, mas também pelos representantes da OSCE”.
Ou seja, se a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa reconheceu os resultados, então é porque as eleições decorreram na maior das normalidades.
Sendo assim, o que levou à anulação do escrutínio e à convocação de novas eleições?
A OSCE olha para a Quirguízia como para o único país democrático na região da Ásia Central, muito importante do ponto de vista estratégico, e, na realidade há razões para pensar assim. Por exemplo, nesse país existe uma liberdade de expressão que não se encontra em mais nenhum Estado da região. Embora muito débil e distorçada, a democracia permite uma certa rotatividade nas estruturas de poder.
Todavia, isso não pode ser motivo para tolerar desvios totalitários, dirigentes corruptos e mafiosos. A Quirguízia é considerada um “Estado falhado” e, por isso, deveria merecer mais atenção da comunidade internacional em momentos de crise como o actual, pois, caso contrário, a instabilidade poderá alargar-se a outros países da Ásia Central ou, mais tarde ou mais cedo, passar a ser governado por um regime autoritário que garanta a “segurança” e a “ordem”, como acontece em Estados vizinhos como Cazaquistão, Uzbequistão, Tadjiquistão, Turquemenistão ou China.
P.S. Deixo aqui duas citações de Vladimir Putin sobre as eleições americanas. Tirem as conclusões: “Temos de olhar objectivamente para as coisas que ocorreram nos últimos anos. Sim, realmente, conseguimos fazer muito no plano bilateral. É preciso dizer isto. Não vou agora enumerar todos os passos positivos que foram empreendidos na construção das relações russo-americanas, mas eles existem. Mas claro que não foram realizadas todas as intenções de que o Presidente Trump falou antes”. E: “O Partido Democrático está tradicionalmente mais próximo dos chamados valores liberais, está mais próximo das ideias da social-democracia se compararmos com a Europa. E o partido comunista nasceu, a certa altura, do meio social-democrático. Eu fui membro do Partido Comunista da União Soviética durante quase vinte anos, dezoito mais exactamente. Sinceramente falando, de base, mas, em geral, um militante consciente. Continuo a gostar de muitos desses valores de esquerda. Que há de mal na igualdade, na fraternidade? Na realidade, isto é semelhante ao cristianismo. De difícil realização na vida real, eles, não obstante são atractivos. Por isso, neste sentido, existe até uma certa base ideológica para o estabelecimento de contactos com representantes do Partido Democrático”.