O segredo da felicidade é Liberdade e o segredo da Liberdade é coragem
Péricles, Atenas, 495-429 a.C.
Um dos grandes problemas da nossa gestão altamente centralizada dos recursos de saúde, foi que se geriu a pandemia em Portugal como se ela tivesse a dimensão da italiana, ou da espanhola, e como se tivéssemos sido surpreendidos, como essas nações foram, por um brutal número de doentes ad initium.
E se algumas medidas copiadas desses contextos foram, provavelmente, adequadas ao nosso, mesmo apesar da descontextualização (convinha também termos a modéstia de perceber que pouco se sabia sobre esse vírus há uns meses, que muito do que dizemos e fazemos, até, nestes tempos são mais do domínio do “achismo” e do peso relativo que atribuímos a uma série de princípios fundamentais entre si), quer em termos nacionais para evitar a entrada “em peso” do vírus, quer em termos regionais em função dos surtos (no Norte primeiro, e agora mais a Sul), muito mais houve também de francamente desproporcionado às realidades do terreno. Digamos que numa espécie de “too much, too soon“.
Como, por exemplo, a brutal exigência de mobilização e preparação permanente, e quase exclusiva, para efeitos Covid dos profissionais de saúde a nível nacional, com apelo a reservistas e tudo, daquilo que se esperava ser uma primeira e brutal vaga, mas afinal nunca motivou, sequer, uma mudança para bandeira amarela de um mar globalmente flat, salvo alguns focos mais ou menos bem localizados. Houve desmultiplicação de camas que ficaram, globalmente, vazias, com multiplicação de horas de trabalho para assegurar as presenças e prevenções para as mesmas, stress e cansaço para todos os actores da saúde e, afinal, nem se ultrapassaram, objectivamente, sequer os números de uma banal época de gripe. Não porque o coronavírus tenha a mesma benignidade, mas, simplesmente, porque nunca chegou realmente a penetrar tão intensamente, nem tão profundamente no nosso país como o fez noutros.
Ou seja, decisões altamente centralizadas, com avaliações enviesadas, que confundem situações regionais com imperativos nacionais (e neste caso até internacionais), alicerçadas em estruturas públicas de saúde esclerosadas e sem qualquer flexibilidade de adaptação, maioritariamente geridas por personalidades medíocres oriundas do tachismo endémico no nosso país, resultaram no esgotamento da totalidade do pessoal de saúde em nome de uma vaga que, para a maioria, nunca passou de uma miragem. Com a agravante da acumulação de tudo o que se devia ser feito em matéria “não Covid” e deixou de se fazer (e terá que ser feito um dia…), e que, como sabemos, já condicionava per se grandes dificuldades de prestação em épocas ditas “normais”.
Isto é relevante, porque como a pandemia é ,de facto, real e o vírus é, efectivamente, demasiado letal nas populações de risco para poder ser subestimado, e o elástico do adiamento da abordagem de todas as outras doenças está prestes a rebentar visivelmente (já o devendo ter feito algures, escondido na penumbra das estatísticas…), qualquer “vaga” a partir de agora vai encontrar um ponto fraco no último sítio onde ele devia existir: na capacidade de resposta do SNS.
Os suecos (sempre os suecos…) dizem que o confinamento resulta muito bem, só que… não é possível em sociedades livres inseridas numa economia de mercado (vide Johan Giesecke, reputado epidemiologista ex-OMS). A não ser que o vírus desapareça subitamente por artes mágicas. Defendem que quem confina tem que desconfinar (com a mesma certeza que as pessoas têm que comer) num ambiente que se sabe à partida que, tão cedo, não se verá livre da Covid e que os riscos que a “psicologia do confinamento” induz, são altamente ameaçadores de princípios básicos de liberdade individual. E tudo com uma eficácia no mínimo incerta, ao ritmo de sucessivos reconfinamentos ou semi-confinamentos, que invariavelmente se seguem a desconfinamentos mais ou menos parciais.
Ou seja, sejamos claros: o confinamento funciona NA DIMINUIÇÃO da incidência da doença na comunidade e no controlo da prevalência de doença activa. O vírus, a partir de certa altura, torna-se residual neste contexto e até pode “desaparecer” (o tal “break the curve“, como sugerido em editorial da reputada “New England Journal of Medicine” há uns meses).
Também convinha ser claro no assumir que, num mundo globalizado onde o vírus existe, onde não há vacina e onde ainda estamos longe da imunidade de grupo, o desconfinamento levará invariavelmente ao recrudescimento da infecção na população (mesmo onde a curva tinha sido “quebrada”: veja-se a China, a Nova Zelândia ou a boa Coreia).
A questão que se deveria pôr é, antes, se uma política de confinamento é socialmente e economicamente possível, admitindo-se que provavelmente não haverá vacina (e muito menos imunidade de grupo nesse contexto) antes de 2021. Ou seja, traduzido por miúdos: 1) “se estamos para isto” durante pelo menos mais uma dúzia de meses, e 2) se isto é viável (ou “a que custo”).
Tal como alertava Giesecke (entre outros), não faltam agora vozes que, perante qualquer aumento de casos ou notícia de surto localizado, desatam a clamar pelo regresso a restrições, proibições e punições diversas, que “tão bom resultado” demonstraram umas semanas antes. Sem sequer saberem se os sistemas de saúde estão saturados, ou se o aumento está descontrolado ou continua local/regional, residual, estável e comportável. A essa paranóia (“do medo”) juntam-se as dificuldades económicas crescentes, uma economia convalescente que volta a agonizar muito antes de se ter curado completamente, dependente do turismo que desapareceu e das suas poucas exportações, empregos que se perdem, empresas a falir e dinheiro que não chega ao fim do mês a um número cada vez maior de famílias, não sendo, por fim, complicado, perceber-se que o nível de dificuldade presente é um mero aperitivo para o que desgraçadamente há-de vir brevemente.
A solução existe e é sociologicamente complexa. Giesecke quis ser premonitório e perante a pergunta de um jornalista inglês (na altura em que o Reino Unido começava o seu confinamento) de “como se desconfinava” e se voltava à normalidade, ele respondeu: “you can’t!” Entenda-se por isso que: “socialmente, deixa de ser possível”. Porque as pessoas, assustadas, nunca compreenderiam um contexto de “deixar o vírus (mais ou menos) à solta” depois de meses de sacrifício, a todos os níveis, para o verem “desaparecer”, bombardeados com os números (pouco contextualizados com outras realidades de doenças existentes) de doentes infectados e de mortos aquém e além fronteiras.
A Suécia, com muita dificuldade, no meio da crítica de literalmente todo o resto do mundo (que não tem interesse nenhum que se demonstre que, se calhar, havia outro caminho menos disfuncionante para lidar com isto), conseguiu o fabuloso feito de nunca confinar a sua população e de sempre apostar, apenas e só, numa estratégia de controlo da taxa de infecção por forma a não saturar a capacidade de resposta dos serviços de saúde, com informação sobre medidas de protecção individual no respeito da liberdade dos seus cidadãos e com um nível de restrições quase residual, quando comparado com os restantes países.
A taxa de infecção, por lá, já atingiu o seu pico, a sua redução é mais lenta que noutros países, mantendo níveis de infecção diários relativamente elevados, e os internamentos em Hospital e UCI’s é decrescente sem nunca terem atingido qualquer ponto de ruptura.
É certo que a mortalidade (também ela decrescente) é mais elevada quando comparada com a dos vizinhos escandinavos, mas é menor se o fizermos com Inglaterra, Itália, Bélgica ou Espanha. É certo que a economia vai sofrer, mas não por culpa própria, já que apesar de continuarem a trabalhar quase normalmente, não deixam de se inserir num mundo global, tratando-se de um país rico à conta das suas exportações, que ficaram altamente comprometidas com os confinamentos alheios. É também certo que não foi uma estratégia “perfeita”, tendo assumidamente faltado protecção aos residentes em lares de terceira idade, responsáveis por mais de 50% de todas as mortes.
Mas as pessoas em geral levam vidas parecidas às da Era pré-Covid e a disrupção social foi mínima. Desde o atendimento aos outros doentes, passando pela escola dos miúdos até aos 16 anos de idade, às suas actividades desportivas, de lazer (mais limitadas num ou noutro aspecto, mas sempre possíveis), até, finalmente e sobretudo, ao respeito pela liberdade individual de todos por parte de um Estado, que sempre teve o cuidado de não tratar o seu povo como um pastor trata o seu gado (mesmo que “no seu melhor interesse”).
A questão da imunidade à doença é um (ainda que pretendido) “efeito secundário” da estratégia. Se o vírus conferir de facto imunidade, eles serão os primeiros a tê-la (a um “preço humano” directamente proporcional à demora, mais ou menos longa, da chegada de uma vacina eficaz). Mas, como dizem os críticos: “e se a doença não conferir imunidade”, ou “e se o vírus mutar”? Bem, se for o caso, então o sucesso (social) da estratégia será estrondoso e todos teremos então que nos render ao “swedish way of life”, uma vez excluída a hipótese vacinal, na qual assenta toda a estratégia do resto do mundo! Quanto aos possíveis tratamentos, sucedem-se resultados de vários estudos e, desejavelmente, teremos cada vez mais respostas a essa questão (o que, no meio de muito “ruído”, ainda não é o caso, talvez com a excepção das indicações para o Remdesivir).
Concluindo: se Giesecke tem razão na sua categórica sentença (“you can’t!“), vamos invariavelmente agonizar lentamente em sucessivos episódios do que temos visto (confinamento-desconfinamento, mais ou menos reconfinamento parcial) até ao surgimento da vacina (ou de evidência que não haverá vacina), com empobrecimento de todos, falência de muitos, colapso por fadiga de um SNS maltratado ao longo de anos de desinvestimento e que não conseguirá assegurar os cuidados necessários sobrepostos aos que entretanto se acumulam, abusos de autoridade com perda de liberdade individual da população, surgimento de tumultos progressivamente mais violentos e desesperados pela miséria. E só nos resta, neste caso, esperar que a tal vacina surja depressa (ou que o vírus desapareça por outra razão qualquer)
Se ele não tem razão, e a população ainda é receptiva e passível de compreender uma mensagem diferente, de convívio com o vírus com precauções especiais e mais restritivas (mas de preferência no respeito das liberdades individuais de todos) para as populações de risco (mesmo sabendo-se que ele não é inofensivo nas restantes), com coragem para aceitarmos perdas inevitáveis em nome dos mais novos, que são o futuro da nação (e que quase não são afectados por essa doença), porém inconscientemente oferecidos em sacrifício em nome de uma estratégia com possibilidades de sucesso no mínimo questionáveis, e se aliado a tudo isso aqueles que nos (des)governam tiverem a capacidade de fazer essa pedagogia, de agir em conformidade, de resistir à tentação de imporem medidas para lá das que estão claramente demonstradas (e que são muito poucas…), de inverter a psicologia do medo que tanto incentivaram, tendo por principal preocupação a capacidade de resposta das estruturas de saúde (que inclui vagas em camas hospitalares diversas, articulação entre unidades hospitalares para as mesmas, criação imperiosa de circuitos limpos com retoma das actividades de rotina extra-Covid, preservação equilibrada dos meios humanos existentes, o que inclui a necessidade de descanso e verdadeiros incentivos, que não têm que ser em dinheiro mas não passam, seguramente, por “futebóis”), então pode ser que exista outra via.
Ou seja – e esse seria o meu unicórnio -, deixemos que o vírus se torne um problema meramente médico e apetreche-se o SNS dos meios para o combater, com uma Saúde Pública activa e eficiente no aconselhamento à população.
E comecemos politicamente a dar preponderância, e depressa, às questões sociais e económicas, sem as quais acabaremos muitos mais por morrer da cura E da doença.
Com coragem e liberdade, e toda a felicidade possível na adversidade.