O «novo normal», ou anormal, destes tempos de pandemia é, para além dos efeitos directos da Covid (doença por coronavírus), acima de tudo resultado dos efeitos indirectos da acção dos Estados sobre os cidadãos, alegando o chavão repetitivo, e mais ou menos sincero e verídico, do «bem comum».

Quanto aos efeitos directos da Covid, sendo médico especialista em Medicina Interna e em Cuidados Intensivos numa UCI de uma das zonas-foco mais activas da doença na Europa, tenho boa noção das consequências, com o óbvio viés de quem observa o piorzinho que resulta da mesma.

Com tanto artigo que massacra os números, tantas vezes sem sentido, enquadramento ou critério, vou fazer um esforço para evitar juntar-me a esse clube.

Em suma, direi apenas que temos uma doença muito contagiosa cuja gravidade aumenta com a idade (entre outras coisas), e cujas formas graves têm o condão de resultar em patologia que hipoteca duradoiramente a disponibilidade de camas para o seu tratamento, podendo desta feita saturar os sistemas de saúde, sendo uns mais débeis e/ou com menos reserva que outros por esse mundo fora.

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Por outro lado, a doença reveste-se de relativa benignidade nas faixas etárias mais jovens (<50-60 anos), na ausência de outras patologias crónicas de base.

A perspectiva da prevenção com base numa vacina afigura-se longínqua. As perspectivas de tratamento, essas, poderão ser mais rápidas, e algumas parecem promissoras, tanto nas formas tardias, graves e inflamatórias, como nas formas precoces.

Este resumo, algo tosco e desprovido de linguagem técnica, mas que julgo fazer um retrato global correcto e acessível à população em geral, reflecte-se depois em « políticas de saúde » que me parecem, umas legítimas e no âmbito das funções de um Estado-providência, outras absolutamente abusivas e atentatórias da Liberdade do comum dos cidadãos, com o perigoso argumento sanitário que tudo parece justificar nos tempos que correm.

Começando com o que é legítimo, o desconhecimento das características da doença na sua fase inicial, geradora de óbvia preocupação, e o tentar «achatar a curva» tendo em vista a não saturação dos serviços (UCI’s à cabeça) de sistemas que não estavam preparados para esta excepcionalidade. Era de facto primordial evitar-se um número de mortes desnecessário por impreparação da estrutura (como terá sucedido em Itália e Espanha, por razões diversas que não interessa aqui debater), e na medida do possível tentar corrigi-la, aumentando a disponibilidade de vagas, redistribuindo-se as capacidades físicas e humanas em função da emergência dessas novas necessidades, e posteriormente estabelecendo-se circuitos para se poder retomar a actividade de sempre em paralelo ao problema pandémico, que está e vai continuar presente e activo. Este último ponto tem sido a meu ver algo descurado, na emergência dos outros e na letargia induzida pelo choque que o confinamento acabou por produzir, mas lá vai sendo desenvolvido.

E este é a meu ver, e na essência, o papel de um Estado com as características do nosso numa situação deste tipo: assegurar a melhor disponibilidade de recursos para o tratamento das patologias da sua população, com a nuance dessa mudança drástica de perfil de patologia neste contexto. E que justificou certas medidas, digamos «extremas», como o decretar do confinamento (tal como em todo lado, com a honrosa e corajosa «excepção sueca», é certo que com algumas particularidades).

Outro papel é, evidentemente, o da informação na prevenção. E aqui começamos então a chegar à fronteira da ilegitimidade do que deve ser a informação (cientificamente correcta) à população, com a deriva para a imposição de medidas.

No fundo, é o mesmo que a separação entre o dever do Estado informar que o tabaco, o álcool, a obesidade, o sedentarismo, etc…, são nocivos para a saúde, e a ilegitimidade que seria que, ao abrigo disso, proibisse a venda de tabaco ou de álcool, limitasse a alimentação dos gordos, ou obrigasse certos cidadãos a fazer determinada actividade física.

O princípio é o da Liberdade (e responsabilidade) individual, e do conhecimento informado. As pessoas assumem os seus riscos, admitindo que o Estado não as pode constranger e que isso constitui um direito fundamental que lhes assiste. Cabe ao Estado, apenas e só, assegurar-se que a mensagem seja universal

Passando a «exemplos infecciosos», na pandemia do HIV foi fundamental a informação sobre protecção sexual, sem ser preciso abolir nem policiar o sexo. Nas gripes sazonais é regularmente dada informação sobre prevenção do contágio e sobre medidas de confinamento e de não recurso às Urgências, e tudo sem proibições. E, apesar da crónica sobrecarga dos serviços nessas alturas a da mortalidade associada, nem sequer a vacina, que nesse caso até existe há muito, é obrigatória nos grupos de risco.

Todos aceitam pois o papel informativo das estruturas de saúde ligadas ao Estado, mas ninguém aceitaria que este, ao abrigo daqueles, lhes impusesse contra a sua vontade alterações do seu modo de vida. É o princípio da Liberdade (e responsabilidade) individual, e do conhecimento informado. As pessoas assumem portanto os seus riscos, admitindo que o Estado não as pode constranger e que isso constitui um direito fundamental que lhes assiste. Cabe ao Estado, apenas e só, assegurar-se que a mensagem seja universal, e chegue o melhor possível a todos, e sobretudo aos principais interessados. E depois cada qual faz com a informação aquilo que bem entender.

Finalmente, chegando então à problemática actual depois de toda esta introdução explicativa, é a meu ver totalmente abusivo quase tudo o que se relaciona com as restrições legais do desconfinamento.

O Estado teve a obrigação, ao longo dos dois meses que mediaram, de se precaver nas estruturas de saúde para poder acudir aos que poderão precisar de cuidados neste novo contexto. O Estado teve dois meses para fazer chegar, com as actualizações que a Ciência foi permitindo (e continuará a permitir), toda a informação sobre como prevenir a transmissão da doença, e sobre como proteger as populações de risco.

A partir daqui, cabe aos cidadãos, na presença da doença (que está para ficar), adoptarem (ou não), em consciência, essas medidas.

Para dar um exemplo, é admissível que, em ambientes fechados de acesso global como supermercados (ou instituições públicas em geral), onde as distâncias de segurança se afigurem difíceis de assegurar, se obrigue, para exclusiva protecção de terceiros que pertençam a uma população de risco (e a Liberdade de cada um acaba quando começa a de outrem), ao porte de máscara cirúrgica (impedindo com essa medida que pessoas doentes possam transmitir-lhes a doença). Em alternativa, poderia-se argumentar que quem se quisesse proteger usasse uma máscara FFP2, e os outros circulariam livremente, mas admitamos um esforço global nesses ambientes particulares. Já é por outro lado totalmente fútil que se obrigue, por exemplo nesse mesmo supermercado, à desinfecção prévia das mãos à entrada (ou da barra do carrinho de compras), já que cada qual é responsável por não as levar à boca, nariz ou olhos sem as desinfectar antes, e sempre, não apenas nesse irrelevante momento do dia em que se vai às compras. Além de que essa noção de « ambiente estéril », além de completamente ilusória, é potencialmente mesmo muito perigosa, por desvalorizar o gesto essencial na prevenção da transmissão dessa doença: lavar/desinfectar sempre as mãos antes de as levar à cara, e nunca as levar à cara antes de as lavar/desinfectar, e isso em qualquer circunstância, inclusive em casa!

Ou que legitimidade tem tem o Estado de determinar que o ensino passará a fazer-se numa base voluntária, segundo os níveis de ansiedade dos progenitores? Ou de interromper a actividade desportiva a milhares de crianças e jovens, com as consequências físicas e mentais que daí advêm?

Dando outros exemplos avulso e de gravidade diversa, que raio de legitimidade tem o Estado de impor o uso de máscaras no exterior, ou até mesmo distâncias de segurança, num ambiente onde, quem quiser, simplesmente afasta-se? Que legitimidade tem para impor quantas pessoas se podem reunir, livre e conscientemente? Ou como as pessoas se devem cumprimentar? Que legitimidade tem para interromper a Educação de crianças que, além de não serem (felizmente) alvo desta afecção, não são sequer mais transmissores da doença que os outros todos (e talvez até o sejam menos)? Ou de as obrigar ao uso de máscara (já que nestas circunstâncias, existindo professores idosos ou crianças doentes com risco acrescido, pois ora se afastam do ambiente escolar em confinamento voluntário devidamente enquadrado, ora protegem-se a elas próprias com as máscaras FFP2, ao invés de mudarem todo o ambiente à sua volta em nome da sua excepção)? Ou que legitimidade tem de determinar que o ensino passará a fazer-se numa base voluntária, segundo os níveis de ansiedade dos progenitores? Ou de interromper a actividade desportiva a milhares de crianças e jovens, com as consequências físicas e mentais que daí advêm? Que legitimidade tem o Estado para decidir que pessoas não se podem sentar num determinado espaço público ao ar livre (e não me digam que não ficaram chocados com as imagens de polícias na praia e obrigarem pessoas a levantar-se, e a sugerir que fizessem isto ou aquilo ao invés…). Que legitimidade tem para impedir idosos conscientes e autónomos de se encontrarem com familiares e amigos? Ou de obrigar um restaurador a ter x clientes em vez de y, quando os clientes são obviamente livres de entrar (ou não) no estabelecimento? Entre muitas outras patetices que eu poderia dar como exemplo por parte de um Estado que se deixou embalar numa deriva paternalista muito pouco respeitadora da Liberdade dos seus concidadãos, em ambientes que extravasam em muito a mera esfera pública.

Só gostava que entretanto tivéssemos todos bem presentes as sábias palavras de Benjamin Franklin: «todo aquele que estiver disposto a abdicar da sua Liberdade em nome de segurança, não merece nem terá nenhuma das duas»

Isto porque me parece que algures no confinamento se perdeu globalmente essa noção, não é objectivo, nem nunca foi, que se as pessoas deixassem de se infectar a Covid desaparecesse por artes mágicas. Ela continua entre nós, e vai continuar durante algum tempo a deixar pessoas doentes, e a acarretar um certo número de óbitos, só que agora numa fase em que temos a obrigação de estar melhor preparados para lidar com as suas inevitáveis consequências, até pelo recuo que este impasse permitiu. E tal como acontece, no fundo, com quase todas as outras doenças, incluindo as infecciosas….

E nem vou, propositadamente, invocar aqui quaisquer «argumentos económicos», nem as consequências da previsível recessão e pobreza na saúde da população, que são temas muito importantes mas que poderão ser melhor debatidos por outros que não eu.

O que me motivou, pois, a escrever estas linhas foi o receio de uma certa paranoia do medo que é, nestes tempos de desconfinamento, uma possibilidade (ou uma evidência?) a meu ver bem real, e potencialmente perigosa. Perigosa na irracionalidade que poderá acometer alguns perante essa difusão de informação confusa e, logo, mal compreendida. E perigosa para as nossas Liberdades mais essenciais que se veem ameaçadas por um Estado (e seus zelosos representantes locais) que, na melhor das hipóteses, parece não ter a noção da importância do limite do seu âmbito de actuação.

Mas no final, a palavra acabará por estar sempre do lado dos cidadãos, e por isso será dependente do nível médio de cidadania e de Educação do país no seu todo, mesmo na presença de um Estado amedrontado e sobretudo preocupado com a sua própria popularidade. Só gostava que entretanto tivéssemos todos bem presentes, nesta altura, as sábias palavras de Benjamin Franklin, que terá dito mais ou menos que «todo aquele que estiver disposto a abdicar da sua Liberdade em nome de segurança, não merece nem terá nenhuma das duas».