No ano passado em Austin, no Texas, encontrei-me enfiada numa cena bizarra. Literalmente enfiada. Entre duas das pouquíssimas pessoas não brancas num bar na avenida central da cidade. Ali como quem bebe um copo a preço de garrafa na Avenida da Liberdade. Claro que a conversa não pôde deixar de ser sobre o elefante. Fui informada, pelo desconhecido filho de emigrantes porto-riquenhos, depois de um desconfortável espreitar por detrás do cabelo, de que o formato dos lóbulos das minhas orelhas denunciavam uma etnia não totalmente caucasiana. Depois de me sentenciar, o desconhecido americano esperou a minha reação. Vi-me obrigada a explicar que era um assunto que nunca pesou em balança alguma sob a qual tenha sido analisada. Respondeu-me “in this land, it matters”.

Seguiu a minha curta visita à terra dos cowboys. Juntei esse episódio a outros, como quando me fotografei junto a um jipe cujas rodas me chegavam aos ombros. Depois disso, não mais. Voltei à simples vida boa.

Nos dias de hoje, esta história tem-me vindo à lembrança. Não que tivesse marcado a forma como me vejo ao espelho. Senti-me igualmente eu naquela terra em que a raça é porta-chaves. Apenas pela inevitabilidade de vasculhar as poucas vezes em que me vi envolvida diretamente em situações relacionadas com discriminação.

O preconceito vive em nós. No meu caso, lá ao fundo. Em baixo. Junto às vértebras desalinhadas, ao estômago que não digere pimento verde e às pedras que habitam na minha vesícula. É uma daquelas maleitas cuja existência eu conheço, mas com a qual convivo bem no seu estado de atrofia quotidiana. Excecionalmente, surge a ocorrência em que vem ao de cima e causa mal-estar dos grossos. E passa. Volto à simples vida boa.

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Os sinais dos meus preconceitos são óbvios. Está em tudo o que eu estranho. Todas as desconfianças que os meus anos de civismo não conseguem calar antes de virem cá para fora. No torcer de sobrancelha quando tenho alguém muito mais jovem do que eu a dar-me indicações técnicas. Quando uma pessoa que não domina a língua me quer recomendar um serviço, quando alguém que nunca vi desafia um hábito que eu tenho desde que me lembro.

Conheço muitas das minhas tendências preconceituosas, o que ajuda a mantê-las lá escondidas no canto delas e abrir espaço a que sejam, como quase sempre são, provadas erradas. Mas bicho ruim é manhoso. Transforma-se. Adapta-se. Disfarça-se. Muitas vezes só damos pela sua presença já depois de ter passado e deixado um rasto viscoso, tal caracol a escalar vidro.

Precisamos uns dos outros. Que venha de lá esse selo de identificação, educação e elucidação de sítios em que a vida boa tende a ser menos simples. Não através de pinturas em marcos de histórias passadas, mas através de partilha de histórias que abram os olhos para momentos futuros. Dos sítios onde os lóbulos das orelhas desempenham funções para além de cabides de bijuteria.

É importante pormos os dedos nas feridas alheias. Escarafunchar bem até fazer mossa na memória cognitiva. Que se nos suba a vergonha às bochechas a lembrar ocasiões em que fomos preconceituosos, para que não nos esqueçamos de manter sempre limpo e em construção o nosso filtro civilizacional.