Por mais estranho que possa parecer, a expressão “Rei morto, Rei posto” (Out with the old, in with the new) não só fez sentido com a subida do novo monarca britânico, Carlos III, mas simultaneamente com a nomeação da nova primeira-ministra, Liz Truss. Ambos iniciam funções nos seus respetivos cargos num período de intensas dificuldades conjunturais e de unidade, num reino que tem enfrentado divergências internas (Reinos) e externas (União Europeia e Commonwealth).
Liz Truss, última primeira-ministra da Rainha Isabel II e a primeira do novo monarca Carlos III, chega ao cargo num momento em que o Reino Unido está a braços com uma crise económica: inflação galopante, aumento dos custos da energia e de bens essenciais, e escassez de combustíveis.
Nas últimas semanas, após os dez dias de luto nacional, a ação política britânica voltou a ganhar novo fôlego com o novo pacote de medidas económicas que Liz Truss apresentou com o seu ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng. Até ao momento, o plano ambicioso aparenta concentrar-se no combate à crise energética, por meio do congelamento das tarifas de luz e de gás; no fomento de reformas na área da saúde e das finanças; bem como na redução de impostos para tentar obter crescimento económico.
Contudo, não só o pacote anunciado não prevê políticas que venham a ser compreendidas e aceites pela maioria dos britânicos, uma vez que poderão recair sobre os mais pobres, e não sobre as empresas ou sobre os problemas estruturais, mas igualmente pela preocupação gerada nos mercados, com a desvalorização da libra esterlina para mínimos recordes. No âmbito da sua participação na Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque, quando confrontada numa entrevista à Sky News sobre estar preparada para tornar-se impopular com estas medidas, a primeira-ministra respondeu: “Sim, eu estou”. Nesse sentido, Truss tem sido comparada à então Dama de Ferro – Margaret Thatcher, que governou entre 1979 e 1990 – pela semelhança na edificação das medidas e objetivos de política económica adotada pelo Partido Conservador britânico.
Com identidades distintas, a unidade dos reinos que compõem o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte), que pautou os 70 anos de reinado da Rainha Isabel II, será um dos problemas que Carlos III e Liz Truss terão de enfrentar, a par da Commonwealth e da conjuntura económica cada vez mais instável e periclitante – resultante não só da guerra na Ucrânia, mas igualmente dos impactos que ainda se fazem sentir do Brexit e da pandemia da covid-19.
De facto, Isabel II teve um importante papel nessa unidade mesmo sem possuir uma ação política visível e efetiva, ainda que sempre a manter uma intervenção nos bastidores da política britânica e a influenciar trajetórias na sociedade britânica. Como Liz Truss disse à frente do número 10 de Downing Street em reação à morte da Rainha: “Foi uma rocha onde o Reino Unido se apoiou”.
Com o falecimento da Rainha Isabel II, essa rocha de união constituir-se-á como delimitação entre um bom e um mau governo – e entre Liz Truss e a ação do chefe de Estado, Rei Carlos III. O agora monarca, tal como a sua mãe, não poderá envolver-se diretamente na ação governativa do Reino Unido; porém, as suas posições anteriores apresentam um homem de opiniões firmes, no que respeita à sociedade e à política britânicas, assim como em temas de meio ambiente, energia, sociedade e até quanto à unidade do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Todavia, essas suas opiniões e posições divergem de muitas das que a atual primeira-ministra defende, como o foco da sua ação nas questões económicas, remetendo para o fundo da gaveta questões caras ao Rei Carlos III (transição energética e aquecimento global, por exemplo). Podemos então esperar alguma rivalidade, direta ou indireta, entre ambos os novos líderes britânicos – um, monarca e chefe de Estado; e o outro, primeira-ministra e chefe de governo –, que se desenvolverá nas audiências semanais, e nunca (a ver) em público.
A Rainha Isabel II viveu a perda do império, mas a ideia de um passado colonial ainda é bastante visível e marcante no seio da Commonwealth. Dos 56 países membros – todos independentes (alguns não fizeram parte do Império Britânico) –, 14 pertencem ao grupo denominado Reinos da Commonwealth, que ainda possui o monarca britânico como chefe de Estado. Com a mudança de monarca, reemergiram questões de desvinculação e defesa de um caminho em direção à ideia republicana, sobretudo nos países das Caraíbas, que assistiram aos Barbados tornarem-se república em 2021.
Os tempos incertos que se vislumbram no futuro do Reino Unido também esbarram na questão do Brexit. Liz Truss – que até à data do referendo, em 2016, era contrária à saída do Reino Unido, tal como fora a posição da anterior primeira-ministra, Theresa May – hoje defende uma abordagem mais dura sobre a questão do Protocolo da Irlanda do Norte, tendo sido a responsável pela alteração unilateral do acordo pós-Brexit, negociado entre o Reino Unido e a Comissão Europeia. Essa contínua inércia na negociação do Protocolo da Irlanda do Norte por parte do governo britânico coloca em risco não só a estabilidade na ilha da Irlanda (alcançada pelo Acordo de Sexta-feira Santa, em 1998), mas, simultaneamente, a união interna, com a questão da independência da Escócia, a qual tem nutrido cada vez maior apoio.
Só se espera que novos escândalos não surjam na duração do governo de Truss, como aqueles que assombraram o seu antecessor e tão “querido” Boris Johnson. Mas esperem: quando o problema é estrutural, as coisas dificilmente mudam para melhor – o chefe de gabinete do número 10, Mark Fullbrook, já teve a nova primeira-ministra a sair em seu apoio, após este ter sido entrevistado pelo FBI, numa investigação relacionada com subornos (até alguma conclusão, todos são inocentes).
Liz Truss e Carlos III não possuem espaço para errar, sobretudo Truss, que possui uma posição delicada – não só em seis anos o Reino Unido teve quatro primeiros-ministros, mas também as eleições gerais estão previstas para maio de 2024. Truss e Carlos III terão um caminho desconhecido pela frente para tentar manter, interna e externamente, um Reino Unido unido.
(Texto redigido de acordo com o novo acordo ortográfico)