“E depois há a violência, a violência multifacetada, abjeta e obsessiva desta «terra sangrenta» em que o Médio Oriente se tornou.”
(Jean-Pierre Filiu)
Nos dias que correm, desde o fatídico 7 de outubro, em que o Hamas destruiu vários mitos sobre o Estado de Israel, grande parte do mundo estremece e agonia-se face à violência indiscriminada, à barbárie dos combatentes do Hamas e à resposta brutal de Israel através dos bombardeamentos massivos e do cerco a Gaza, privando todos os seus habitantes de água, eletricidade e combustíveis.
Face a outros conflitos mais recentes, o israelo-palestiniano tinha entrado em modo silencioso no noticiário internacional, embora, localmente, as feridas continuassem abertas e períodos de tréguas alternassem com picos de violência que, em regra, provocavam mais baixas do lado palestiniano e iam alimentando o crescimento da retórica extremista dos judeus ortodoxos e dos partidos políticos que os representam, agora no governo.
De vez em quando, dava-se conta de mais uma ação dos ortodoxos a ocuparem casas de palestinianos e a expulsá-los das suas terras, da destruição de mais um edifício por, supostamente, servir de habitação e refúgio a “terroristas” e ao ataque com rockets por parte do Hamas, quase sempre intercetados pelo até agora considerado quase imbatível sistema antimíssil “Escudo de Ferro”.
Foi neste caldo de intolerância que foi levedando, certamente com o apoio dos patrocinadores do Hamas, com o Irão à cabeça, a ação surpresa desencadeada na madrugada do dia 7, que pulverizou o muro de segurança israelita, cegou as suas defesas eletrónicas, iludiu a vigilância das suas forças de segurança, massacrou centenas de israelitas e fez dezenas de reféns para os tentar trocar por palestinianos a cumprirem pena em prisões israelitas.
Face à gravidade do ocorrido há uma reação natural de horror e total condenação por ataques a pessoas indefesas realizados com inaudita selvajaria, sem ponta de respeito ou comiseração por crianças acabadas de nascer, idosos, mulheres grávidas, violando e matando, com requintes de malvadez, todos os que encontravam pela frente, exceto os que, talvez aleatoriamente, eram selecionados como reféns.
Infelizmente, esta violência cega e sem limites faz parte do costume local, desde há milénios, e se já não se recorre a empalamentos usa-se o telemóvel da vítima para filmar os horrores a que foi sujeita e divulga-se no seu próprio perfil para que os mais próximos sofram, duplamente, a perda de um ente querido e a humilhação e sofrimento a que foi sujeito nos últimos momentos ou, no caso dos reféns, a ansiedade inimaginável de quem não sabe o que lhes aconteceu, se estão vivos ou mortos, se estão a ser sujeitos a sevícias ou se, pura e simplesmente são eliminados e desaparecem para sempre sem sequer ser possível confirmar as mortes, restando apenas o vazio e a dúvida infinita.
Após o espanto e a indignação segue-se a tomada de partido, os simpatizantes de Israel organizam-se em protestos contra os palestinianos e os simpatizantes destes fazem o inverso. Clama-se que Israel tem direito e defender-se, que os palestinianos têm direito a atacar, como se os palestinianos fossem todos combatentes do Hamas, da Fatah ou de outros grupos paramilitares e os israelitas todos apoiantes dos judeus ortodoxos e das políticas belicistas de alguns dos seus governos.
Se a responsabilidade material do ataque de dia 7 e das suas sequelas é do Hamas, a responsabilidade política de quem permitiu que se chegasse a esta situação é, em primeira linha, de quem engendrou a solução de uma pátria para os judeus na região mas não assegurou a manutenção do equilíbrio entre as partes, se é que isso é possível, e de quem alimentou uma contenda que, de um lado, visa a destruição de Israel e, do outro, a garantia da segurança e sobrevivência desta à custa do sacrífico dos palestinianos.
Também não é por acaso que o Hamas lançou um ataque desta envergadura agora, Israel estava enfraquecida, nomeadamente em resultado da chantagem de Netanyahu, alavancado pelos ultraortodoxos, face ao poder judicial, que dividiu o país e quebrou até a unidade dentro das forças armadas e de segurança, a que não deve ser alheia a quebra de capacidade analítica da Mossad e de outras secretas, que não conseguiram descodificar os sinais do que se preparava que, seguramente, o Hamas não conseguia esconder totalmente.
Também a perspetiva de uma normalização diplomática com a Arábia Saudita seria/será, sejamos otimistas, uma machadada nos interesses dos extremistas palestinianos não só pelas consequências de uma paz entre Israel e Arábia Saudita, mas pelas implicações que isso teria, ou virá a ter, em todo o Médio Oriente, incluindo a possibilidade de mais facilmente se encontrar uma solução pacífica para o conflito, limitando a influência do Irão, diminuindo a intervenção da Rússia e da Turquia na região e trazendo de volta os Estados Unidos que na era Biden desinvestiram, até agora, no Médio Oriente, com resultados que estão à vista também na ação militarmente sofisticada do Hamas.
Aqui chegados importa tentar perceber como poderá evoluir o conflito. Até ao momento em que escrevo, Israel continua a castigar duramente Gaza e recorre ao cerco, uma das mais antigas táticas de guerra, embora com um perigo evidente ao impor sofrimentos igualmente inaceitáveis a uma população que não tem culpa das ações políticas e militares das suas lideranças, que não tem qualquer escapatória e cujo sofrimento e opressão podem fazer voltar contra Israel a opinião pública internacional e fazer vacilar os seus principais apoiantes.
A existência de reféns só é importante enquanto houver esperança de salvar alguns, se ela deixar de existir Israel fica mais livre para ações ainda mais violentas e destrutivas, mas é necessário considerar a possibilidade de o Hezbollah desencadear um ataque massivo a partir do Líbano e Israel se ver entre dois fogos, situação que não será fácil e acarretará custos militares e civis de dimensão incalculável. De qualquer modo, os Estados Unidos estarão de prevenção e a maioria dos países árabes que contam estão mais interessados no seu futuro do que no dos palestinianos a quem se pode aplicar o mesmo ditado que aos Lusitanos “não se governam, nem se deixam governar”.
A prioridade deve ser fechar a “porta do inferno” que o Hamas escancarou e para isso Israel tem de ser capaz de se conter, não tomando todos os palestinianos de Gaza por militantes do Hamas, infligindo aos extremistas o máximo de perdas, destruindo as suas bases operacionais e logísticas e, para isto, tem de entrar na faixa de Gaza e correr o risco de afrontar um vespeiro, sob pena de não conseguir manter a segurança do país e dos seus habitantes.
Não vai ser militarmente fácil, o custo em vidas humanas vai ser brutal, mas não parece restar outra solução. Para obter sucesso, Israel precisa que a população palestina de Gaza acredite que entre o Hamas e Israel, a segunda opção é preferível; mas haverá capacidade para o conseguir?
Depois do desastre talvez ainda venha a ser possível acreditar que “Falta uma hora para o nascer de um novo dia em Jerusalém. A Cúpula da Rocha já abriu; os muçulmanos rezam. O Muro está sempre aberto; os judeus rezam. A Igreja do Santo Sepulcro está aberta; os cristãos rezam em várias línguas” (Simon Montefiore); Finalmente, que a paz regresse aos corações de quantos partilham a tragédia atual.
Permitam-me que recomende três livros indispensáveis para perceber melhor o que se passa em Israel e na Palestina:
Filu, Jean Pierre, (2022). Uma história laica do Médio Oriente, de 395 ao presente. Lisboa, Círculo de Leitores.
Khalidi, Rashid (2022). Palestina, uma biografia. Lisboa, Ideias de ler.
Montefiore, Simon Sebag, (2021). Jerusalém, a biografia. Lisboa, Crítica.