Chegados ao início do verão, todos os anos o país acaba alguns dias entretido na análise dos malfadados “rankings das escolas” e, uma vez mais, dois polos antagónicos se digladiam nas redes sociais e em infindáveis artigos de opinião e painéis televisivos.
Por um lado, há quem, geralmente mais próximo do lado esquerdo do espectro político, entenda que a existência de rankings que avaliam os resultados das escolas são fenómenos espúrios e maliciosos, que têm como objetivo minorar a escola pública e inferiorizar os alunos que são formados em escolas com uma baixa posição nas escalas comparativas. Entendem, os defensores desta visão violentamente crítica, que as escolas mais bem classificadas o são apenas por via de seleção dos seus alunos ou por fatores socioeconómicos favoráveis. Aproveita-se, também, este momento para voltar à carga da ideia de que as escolas privadas oferecem condições injustamente favoráveis aos seus alunos — face aos frequentadores de escolas públicas — por maliciosa e deliberada insuflação de classificações internas, ainda que tal fenómeno seja totalmente independente dos rankings baseados na média das notas em exames nacionais.
No campo oposto há quem utilize a menor classificação global das escolas privadas como prova da irrefutável superioridade do ensino de base privada e social, exacerbando a ideia de aparente fraca qualidade da escola pública e da sua inevitável degradação contínua, ignorando por completo características da população escolar que são determinantes não negligenciáveis destes resultados.
Como é meu apanágio pessoal, considero que “é no meio que está a virtude” e que também neste tema, como em tantos outros, a ponderação duma análise distanciada de ambas as posições mais extremas e de base emocional é que nos permite ter uma visão holística, ponderada e minimamente isenta.
A análise comparada é um dos pilares basilares para poder desenvolver políticas públicas baseadas na evidência, assentes em factos concretos e com a possibilidade de melhorar políticas deficitárias ou abandonar estratégias malsucedidas. É neste âmbito que os rankings das escolas são úteis, permitindo um termo comparativo em pé de equiparação possível, uma vez que são baseados nas notas dos exames nacionais — que são realizados no mesmo momento em todo o país, eliminado o efeito resultante de diferentes níveis de dificuldade ou exigência avaliativa.
Daqui resulta que uma das críticas mais frequentemente apontadas ao ensino privado ou social — o da insuflação artificial das classificações internas — não afeta o ranking dos exames, sendo esta uma discussão que ainda que válida não deve ter lugar nesta análise específica. Não nego que este fenómeno é real e cria uma desigualdade de oportunidades à partida entre alunos do setor privado/social e público, mas essa é apenas mais uma razão para reforçar a importância da existência de provas estandardizadas e universais (provas de aferição, testes intermédios e exames universais) e não na luta pela sua eliminação, como é uma bandeira comum do Partido Comunista Português, do Bloco de Esquerda e das franjas mais jovens e radicais do Livre e do Partido Socialista.
Centrando-nos então apenas no que afeta diretamente os rankings (as notas de exames nacionais) resulta que a variação entre escolas pública, privadas e socias serão o resultado da interseção multifatorial de diversos parâmetros, nomeadamente:
a) condições de contexto
É inegável que ter pais com maiores formações académicas, mais rendimento e vivendo em geografias com condições sociais menos desfavoráveis atribui uma vantagem competitiva a priori comparando a crianças que p.e. vivem em famílias disfuncionais, com dificuldades financeiras e más condições físicas de habitação.
b) financiamento e recursos
As dificuldades financeiras do Estado Português nas últimas duas décadas criaram insuficiências em recursos técnicos, de infraestrutura e de atração de pessoal qualificado e motivado para os serviços públicos, e a educação não passou impune a estes desafios.
As contestações, mais ou menos legítimas, do pessoal docente e discente da escola pública tem agravado as insuficiências do cumprimento do serviço público de educação, deixando dezenas a centenas de milhar de crianças e jovens todos os anos sem cumprimento dos planos educativos, limitando o seu potencial máximo de aprendizagem e privando-as de todo o seu potencial educativo com custos presentes e futuros
c) particularidades do serviço público de educação
A escola pública não tem — e bem — mecanismos de seleção dos seus alunos, sendo obrigada a oferecer serviços a todos os cidadãos, independentemente das suas condições de partida.
Uma escola pública que tenha que servir uma população muito maior do que aquela para a qual as suas instalações, recursos humanos e financiamento permitem não conseguirá garantir a mesma qualidade de ensino que uma que se localize num contexto geográfico, social ou demográfico mais favorável.
Ao servir a generalidade da população portuguesa, a escola pública tem que oferecer serviços diferenciados e planos de recuperação de aprendizagens para alunos com necessidades educativas especiais, dificuldades de aprendizagem e desafios sociais ao ensino. Estas especificidades da educação pública criam desafios adicionais à estabilidade financeira das escolas públicas, à gestão dos escassos recursos humanos e gerando impacte nos resultados absolutos mensuráveis da educação.
Por todas estas razões, uma análise comparativa direta é não só injusta como factualmente ferida de morte pela desigualdade dos pontos de partida. Mesmo no contexto da comparação entre escolas do setor público são encontradas diferenças muito marcadas nos resultados em exames nacionais de escolas que se encontram em contexto socioeconómicos muito favorecidos (p.e. ES Infanta Dona Maria (Coimbra) com média de 13,27 valores e ES da Baixa da Banheira, Vale da Amoreira e Moita (Moita) com média de 5,81 valores).
A heterogeneidade dos alunos na escola pública torna-se evidente em casos de escolas com elevada população estudantil que serve zonas urbanas e suburbanas. Uso como exemplo paradigmático um caso que conheço na primeira pessoa, por ter sido a instituição onde fiz o meu ensino secundário: a ES Alves Martins em Viseu, vulgarmente conhecida por “Liceu”.
Apesar de ser reconhecida quase anualmente como uma escola pública de excelência por ter um número muito elevado de ex-alunos colocados nalguns dos cursos mais procurados do Ensino Superior, a ESAM surge “apenas” no 71º lugar do ranking com uma média de 13,07 valores — quase 40 posições abaixo da e com menos 1,2 valores que a melhor escola secundária do distrito de Viseu, a ES de Vouzela. No entanto, foi também notícia que a ESAM foi a escola pública com o maior número de alunos com 20 valores em pelo menos um exame, um valor superior a qualquer escola do setor privado ou social.
Esta aparente incongruência explica-se pelo facto de a ESAM receber alunos de todo o concelho de Viseu e de municípios limítrofes, com uma elevada heterogeneidade de contextos e com uma população estudantil de mais de 2000 alunos por ano. Esta escola parece servir um propósito essencial do serviço público de educação (seja ele prestado pelo setor estatal, privado ou social): a elevação social através da educação, nivelando por cima os alunos e permitindo que estes ultrapassem os determinantes negativos do seu contexto — que não escolheram.
É, por isso, importante que impere a moderação e o bom senso nas discussões em redor dos rankings escolares, e que estes sejam vistos como um instrumento útil de diagnóstico e comparação do que é comparável, tratando por diferente o que não é igual.
Se defendo que as famílias devem ter uma muito maior liberdade de escolha face à escola onde os seus filhos estudam — e que parte dessa liberdade pode ser alcançada através de modelos como o cheque-ensino — também não ignoro que cabe ao serviço público de educação muito mais do que é naturalmente exigível aos demais setores. O serviço público de educação é o primeiro elevador social na vida de cada pessoa, ainda antes da assunção plena dos direitos e deveres da cidadania e, por isso, merece que seja tratado com respeito e com elevação.
Acolhi com agrado as declarações de Alexandre Homem Cristo, atual secretário de Estado da Educação e um dos maiores da educação em Portugal, sobre os ranking, e espero que o Governo cumpra aquilo com que se comprometeu: a preservação dos momentos de avaliação universal, a introdução de determinantes de contexto nos rankings escolares (permitindo avaliar o efeito de elevador social de cada escola face ao ponto de partida, em detrimento duma análise simplista de resultados finais) sem, contudo, negar a importância da análise comparativa para a melhoria contínua.
As nossas crianças e jovens merecem mais e melhor do que o que foi oferecido a gerações contínuas. Merecem um serviço público de educação eficaz, autocrítico, capaz de se melhorar e com mecanismos cada vez mais eficazes de interação entre todos os setores que podem atuar na garantia do cumprimento desse serviço público — seja ele prestado por quem for.
Que futuro?
Chegados a este ponto, torna-se claro que há uma posição moderada e ponderada na questão dos rankings de classificações internas e externas que permite colher os benefícios analíticos objetivos dos mesmos e gerar melhorias contínuas para a educação — seja ela pública ou privada.
Uma primeira etapa passa pela criação dum modelo de pontuação dos resultados escolares que tenha em conta não apenas os resultados finais das classificações internas e externas, mas integrando anomalias positivas e negativas em relação à mediana duma determinada área geográfica e adicionando ponderações de determinantes económicos, demográficos e sociais que alteram a priori os resultados que as escolas podem gerar. É muito diferente olhar para uma escola que tem uma média de exames muito baixa mas que tem uma reduzida anomalia face à média interna ou comparada com escolas com populações similares que uma escola com bom resultados em exames partindo duma base inicial mais vantajosa.
Uma segunda fase terá que resultar da utilização dos dados recolhidos para fazer análises comparadas sérias, baseadas em dados objetivos e tendo em conta o contexto de cada escola, a identificação das insuficiências de recursos, necessidades particulares da população escolar e avaliação da performance do estabelecimento escolar, isto é, quão eficiente é em aumentar as oportunidades das crianças e jovens que o frequentam face à sua linha de partida. A educação é o mais importante elevador social e a maior porta para a alteração dos contextos de base no qual cada um nasce, garantindo o maior nivelamento possível de igualdade de oportunidades efetivas e dando todas as ferramentas para que cada cidadão decida utilizá-las ou não.
Por último, o mecanismo de funcionamento das escolas que prestam serviço público tem que ser alinhado com métricas de resultados, ajustando financiamento e maior liberdade de gestão de recursos (financeiros, humanos e de infraestrutura) de acordo com melhores ou piores resultados, garantindo incentivos sérios para a melhoria do serviço prestado às crianças e jovens, às suas famílias e à sociedade, ao mesmo tempo que se trata diferentemente o que não é igual.
Uma escola que sirva uma população com maiores desafios na sua atividade por características da população que serve, por ter uma maior quantidade de estudantes com necessidades educativas especiais ou currículos educativos mais diferenciados devem ser tratadas de forma especial, garantindo um financiamento adequado ao serviço que prestam. Um modelo similar acontece no financiamento estatal da prestação de serviços públicos de saúde — seja por instituições públicas, privadas ou social — com incentivos para a eficiência, produtividade, resultados em saúde, melhoria contínua e com componentes que avaliam a satisfação dos utentes e compensam financeiramente hospitais com maiores dificuldades na sua atividade que não resultam da sua ação, mas duma situação desfavorável de contexto.
A criação dum modelo de cheque-ensino é muitas vezes atacada pelo facto de criar desvantagem entre alunos com necessidades distintas e de ser indiferente às situações de contexto que impedem que o mesmo projeto educativo gere os mesmos resultados em todo o país. E são críticas compreensíveis e válidas, mas resolvíveis com um desenho inteligente — complexo e desafiante, sem dúvida — do cheque-ensino, através de financiamento diferenciado de acordo com as situações de contexto originais e de eventuais necessidades educativas especiais.
Desta forma, o incentivo criado poderá ser inclusivamente o contrário dum cheque-ensino estandardizado: um modelo de financiamento diferenciado que valorize resultados objetivos e relativos torna a atração de potenciais alunos mais “complexos” muito mais fácil e com o adequado ajuste monetário que permita à escola cumprir o serviço público de educação com qualidade.
Independentemente das ideias prévias sobre a importância dos exames nacionais, da posição política sobre a função do setor privado e social no cumprimento do serviço público de educação, da postura sobre uma medida inovadora em Portugal como o cheque-ensino, há conclusões que devem ser minimamente consensuais:
1.o serviço público de educação em Portugal está numa longa crise, que compromete o direito à educação e ao elevador social a gerações de crianças e jovens — com um custo incalculável para o presente o futuro dos indivíduos e da sociedade
2.se se entendem as assimetrias nas classificações internas e externas como negativas, não pode haver redução da existência e importância de momentos estandardizados de avaliação, como as provas de aferição ou os exames nacionais
3.os rankings de classificação interna e externa das escolas estão desenhados de forma ineficaz e não permitem a dedução de conclusões vitais para a melhoria do sistema nacional de educação e é urgente que sejam reformulados com dados de contexto de cada instituição educativa
4.o modelo de financiamento do sistema educativo deve ter componentes que promovam e valorizem sinais de melhoria contínua de resultados, que premei as escolas que conseguem criar maior movimento de elevação social face ao contexto da sua população escolar e que responda adequadamente a necessidade educativas especiais
Noutro momento teremos que olhar para outros pilares do sistema nacional de educação que merecem atenção e pulsão para a reforma, como seja uma (maior) liberdade de definição de programas curriculares e modelos inovadores de ensino, o alinhamento do ensino com o mundo do século XXI abandonando modelos do século passado ou a (maior) liberdade das instituições de ensino superior definirem os seus critérios de entrada. Comecemos, por agora, pelas bases.