Quando finalmente deixou de existir escassez de vacinas, iniciou-se o debate sobre a obrigatoriedade ou não da vacinação Covid. O habitual, é ouvirmos ou fazermos a afirmação do princípio da liberdade de todos, desde que a liberdade de cada um não afecte a liberdade dos outros. Princípio muito lapalisse que parece resolver tudo e afinal não resolve nada. Vamos a um caso concreto e reflectir sobre que respostas dar.

Presido ao Conselho de Curadores de uma fundação (para o caso não interessa qual, naturalmente) que necessitou de realizar a reunião anual de aprovação de Relatório e Contas. Dada a idade superior a 60 anos de todos os curadores, era previsível que já estivessem vacinados. De facto, se apesar de todos estarem vacinados tivermos de continuar a reunir por meios telemáticos, então será melhor isso ser consagrado na lei para não subsistirem dúvidas e acaba-se de vez com as reuniões presenciais. E, já agora, acaba-se também, por arrasto, com a credibilidade das vacinas como modo de recuperarmos uma vida normal.

Como tal norma não existe fora do estado de emergência, a assembleia foi convocada para ter lugar presencialmente. Os curadores são sete, verificando-se que seis estavam de facto vacinados e um não estava por opção própria, sem que a razão para isso fosse qualquer problema de saúde impeditivo. Trata-se, simplesmente, de alguém que não quer ser vacinado. Informados do facto, os restantes curadores recusaram reunir presencialmente com o curador não vacinado. Também não existe nenhuma norma que impeça a presença do curador não vacinado, uma vez que estando os restantes inoculados, não correriam, em teoria pelo menos, algum perigo com a presença do outro. No entanto, simplesmente recusaram. E assim, independentemente de tal conduta de recusa ser legítima ou não, a assembleia presencial sem a presença da maioria dos curadores nunca se poderia realizar por falta de quórum. No caso concreto optou-se por realizar a assembleia presencial com os vacinados, tendo o curador não vacinado participado por videoconferência. Mas atenção, isto ocorreu assim porque existiu acordo. A não ter existido esse acordo, a única opção era manter a reunião por via telemática, provavelmente esta e a dos próximos anos, em virtude de uma das pessoas ter recusado vacinar-se.

Vejamos agora a situação ao invés. Se os não vacinados fossem seis e o vacinado apenas um: os não vacinados solicitavam a reunião presencial e o curador vacinado ou comparecia ou, a não o pretender, ficava à mercê da amabilidade dos restantes – que tinham quórum – de o fazer participar por vídeoconferência ou, não o fazendo, estaria arredado das decisões que viessem a ser tomadas.

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Portanto, a questão da simples expressão de liberdade para todos desde que não afecte a liberdade dos outros é muito atractiva como princípio, mas na prática fica despida de eficácia. Em qualquer das opções que citei, o que realmente se impôs foi a vontade da maioria. A vontade da maioria é historicamente o modo como as sociedades se têm regulado através dos séculos e isso não constitui novidade alguma. Acontece também que a lei, num Estado de Direito, visa, entre outros objectivos, cumprir a vontade das maiorias, mas de modo a que não exceda os limites dos também protegidos direitos das minorias.

Por conseguinte, a questão não é só a de saber se a vacinação deve ser obrigatória para todos ou não, sem prejuízo de em certas profissões dever mesmo ser obrigatória, sob pena de quem não a quiser continuar a ter a liberdade sim, mas a liberdade de mudar de profissão.

A questão essencial afigura-se ser a necessidade de legislar, no sentido de fixar quais são os actos que legalmente só podem ser praticados de modo colegial, nos quais a recusa da vacina torna o recusante inabilitado para participar presencialmente em tais actos colegiais. Por exemplo, só nos podemos matricular na faculdade com a apresentação do boletim de vacinas. E não me ocorre que os pais de algum colega tenham prescindido de oferecer a possibilidade de uma licenciatura ao seu filho em troca da liberdade de não o vacinar de acordo com o Plano Nacional de Vacinação. Mas que os pais de qualquer aluno tinham liberdade de optar pela não vacinação do seu filho, lá isso tinham. Sabiam era as consequências disso.

Há, pois, que regular legislativamente na Assembleia da República – com os representantes eleitos pelo voto soberano que receberam – as condições em que quem opta por recusar a vacinação, fazendo-o no pleno exercício da sua liberdade individual, possa saber antecipadamente as limitações que essa decisão lhe acarreta em sociedade, de modo a que possa organizar a sua vida e as suas opções profissionais de acordo com essas novas circunstâncias, decorrentes da sua decisão.

Ter o melhor de dois mundos seria o que todos gostaríamos de conseguir, mas, de facto, esse desejo só deve mesmo ser possível noutro mundo, que não neste.