A Coligação “Para a Frente” declara no seu programa eleitoral a necessidade de reformar a Segurança Social, defende um debate alargado, o envolvimento da sociedade civil e um amplo consenso político. O Partido Socialista assume no seu programa eleitoral gerir de forma reformista o sistema de Segurança Social visando reformar a sustentabilidade, equidade e eficácia redistributiva.

Ambos reconhecem que há uma quebra de confiança dos contribuintes e beneficiários no sistema de pensões e a necessidade da sua recuperação. Ambos concordam que é preciso melhorar o rigor e a profundidade dos estudos e projecções, melhorar a comunicação e a divulgação de estatística de qualidade, tudo a bem da transparência e do escrutínio público. Ou seja, ambos reconhecem que algo vai mal no plano da transparência e da accountability. Proclamar todas aquelas melhorias, exigentes e necessárias, implicaria assumir, também, mudanças no modelo institucional de governação do sistema de Segurança Social. Mas ambos não o fazem, pelo menos explicitamente.

Ambos reconhecem que há desequilíbrios financeiros estruturais no sistema de pensões, apontando as suas causas para a evolução demográfica. A Coligação lista um conjunto de princípios que a reforma deve salvaguardar e apresenta um conjunto de preocupações a que a reforma deve atender. O Partido Socialista apresenta uma lista de linhas de actuação a que se deve submeter a gestão prudente para melhorar a sustentabilidade da Segurança Social.

Ambos não apresentam um projecto ou visão de futuro para o sistema de pensões. A Coligação proclama a necessidade de uma reforma mas não a concretiza e o Partido Socialista proclama uma gestão reformista e prudente sem assumir a necessidade de uma reforma.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É bom ter presente que as dificuldades financeiras estruturais do sistema de pensões, e mais recentemente na janela temporal do curto prazo com ondas que se irão propagar ao longo do tempo, têm consequências graves ao nível de outras dimensões igualmente importantes, mas que têm estado ausentes da avaliação e discussão do problema.

O sistema de pensões (refiro-me ao Sistema Previdencial da Segurança Social) apresenta problemas financeiros estruturais (isto é, as contribuições não são suficientes para fazer face, no médio e longo prazo, às despesas com as pensões prometidas). A avaliação actuarial do Sistema Previdencial de Segurança Social recentemente publicada (*) mostra a existência de uma dívida implícita, isto é, de défices de contribuições futuras para fazer face às pensões prometidas calculadas de acordo com as regras em vigor. Esta dívida implícita ascende, num cenário mais favorável, a 60% do PIB.

Mas resumir o problema do sistema de pensões à dimensão financeira é redutor. A insustentabilidade financeira está e vai continuar a gerar iniquidades entre gerações. Este é um problema de que pouco se fala, muitas vezes secundarizado.

Ora, é uma questão da maior importância. A iniquidade intra e entre gerações está na base da perda de confiança no sistema de pensões. A desconfiança que está instalada é legítima. O que está em causa é o “contrato social” que une gerações, no qual assenta o mecanismo de repartição através do qual as gerações no activo que fazem contribuições para pagar as pensões dos pensionistas esperam (no nosso caso, já não esperam!) que as futuras gerações de activos financiem as suas pensões mantendo o mesmo nível de benefícios. A existência de défices financeiros futuros impede este compromisso social.

Já há muito tempo que o “contrato social” se quebrou, devido justamente às recorrentes medidas e reformas paramétricas que têm vindo a ser introduzidas, reduzindo crescentemente benefícios de geração em geração, justificadas pela necessidade de dar sustentabilidade financeira ao sistema de pensões, acomodando de forma administrativa e parcial as condições económicas e demográficas e outras (ex. finanças públicas) que afectam a capacidade de fazer despesa e de realizar receita. Simplesmente, estas alterações não só não resolveram os desequilíbrios financeiros de longo prazo, como aprofundaram as iniquidades intergeracionais e estão a mostrar não ser capazes de garantir a adequação do rendimento na reforma. As taxas de substituição aferidas ao último salário estão num trajecto decrescente, estimando-se uma evolução de 50% em 2020, 43% em 2030 e 31% em 2060 (**).

Os problemas financeiros não podem ser atribuídos, como alguns querem fazer crer, à crise que o País atravessa. Ou seja, bastaria retomar os níveis do emprego anteriores à crise e os problemas desapareceriam! A crise veio, sim, antecipar ou evidenciar a necessidade de repensarmos o caminho que tem vindo a ser seguido.

A dimensão financeira é uma consequência de outras dimensões: económica, demográfica e política. O declínio demográfico no qual estamos afundados vai-nos roubar progressivamente cerca de 800 mil pessoas até 2030 e 2,4 milhões de pessoas até 2060, a população com mais de 65 anos será o triplo da população jovem e a população activa sofrerá uma redução de 1/3 face à situação actual (**). Sabemos que estas datas ainda estão longe, mas falar de pensões implica justamente a capacidade de olhar para lá do imediato e dos períodos eleitorais.

A dimensão social vai-se complicando e a margem de manobra política vai-se estreitando com o agudizar de um processo crónico de perda de valor do nosso Sistema Previdencial da Segurança Social.

A prioridade está, a meu ver, na construção de um projecto para o sistema de pensões que seja capaz de reestabelecer a confiança: que seja financeiramente sustentável, que assegure a equidade entre gerações e a adequação do rendimento na reforma. E que tenha também objectivos macro económicos: promover a competitividade, a poupança de longo prazo e a valorização do capital humano.

Reestabelecer a confiança significa as pessoas compreenderem quais são os problemas e acreditarem em mudanças capazes de repor a equidade e conferir estabilidade. Sem estas condições os participantes do sistema não se comprometem positivamente. A ideia de que as pensões são um fardo social e um peso para a despesa pública e um entrave à economia está errada. Um olhar assim é a prova de que muitas coisas não estão bem. Ora, um sistema de pensões deve ser parte activa no desenvolvimento económico e social.

As gerações mais novas deixaram de acreditar que valha a pena fazer contribuições, duvidam, (até têm certezas!), que o sistema lhes venha a pagar uma pensão quando um dia chegarem à idade da reforma e temem que lhes seja exigido mais esforço contributivo, por via do aumento da taxa contributiva e/ou por via do aumento dos impostos. O princípio da contributividade perdeu-se, a relação entre as contribuições e as pensões tem-se vindo a desmoronar, com a interferência dos impostos para resolver défices financeiros do sistema. A promessa de um benefício definido estabelecido por uma fórmula de cálculo que não pára de ser alterada vai subvertendo passivamente o sistema, transformando-o num benefício indefinido. É isto que queremos?

  Ambos os programas eleitorais indicam a introdução de mecanismos de plafonamento (leia-se reduções/tectos às contribuições e reduções/tectos às pensões). No caso da Coligação trata-se de um plafonamento horizontal – é fixado um máximo salarial a partir do qual não há incidência de contribuições – e no caso do Partido Socialista trata-se de um plafonamento vertical – é estabelecida uma redução generalizada de contribuições para todos os salários. Embora de natureza diferente, ambos os mecanismos de plafonamento são actuarialmente neutros no tempo, isto é, o que determinam em redução imediata de contribuições actuais tem como contrapartida no longo prazo uma redução das correspondentes pensões futuras.

Ambos os mecanismos implicam a necessidade de financiamento adicional para repor, no entretanto, que pode ser um período mais ou menos longo, a perda imediata da receita de contribuições. Ora, as restrições económicas e de finanças públicas que o País atravessa dificultam e inviabilizam o financiamento dos custos de transição destas opções. Fazê-lo introduz um risco adicional na já frágil situação financeira do Sistema Previdencial de Segurança Social com consequências gravosas a diversos níveis. Ambas as propostas não constituem uma solução, nem são, a meu ver, uma prioridade.

É verdade que há muitos países europeus – alguns deles citados como exemplos de modelos de Estado Social a seguir, como é o caso da Suécia (não consta que tenha feito uma qualquer privatização da segurança social) e para não ir tão longe olhe-se para a vizinha Espanha – que introduziram mecanismos de plafonamento e/ou taxas contributivas diferenciadas em função dos níveis salariais. Mas fizeram-no inseridos numa lógica de reforma dos seus sistemas de pensões e/ou dispondo de recursos financeiros/reservas financeiras para o efeito e/ou em circunstâncias orçamentais de alguma distensão na escolha de opções de políticas públicas.

Nestes países, o mecanismo do plafonamento – essencialmente horizontal – foi acompanhado de outros mecanismos visando a efectiva poupança privada para a reforma, colectiva ou individual, de modo a melhorar a pensão global. Em Portugal este pilar não está desenvolvido, reduz-se a pensão pública sem cuidar de a complementar com outro tipo de poupança. Apenas 5,5% dos trabalhadores dispõem de planos de poupança complementar para a reforma de iniciativa das empresas e apenas 3,3% faz planos de poupança para a reforma. As pensões pagas pela poupança privada para a reforma (2º e 3º pilares) correspondem apenas a 1,8% do total da despesa pública com pensões dos regimes contributivos. Números que contrastam negativamente com a média dos países da União Europeia e da OCDE (***).

É, a meu ver, uma prioridade inverter esta cultura. O simples facto de vivermos mais tempo deveria suscitar a necessidade de transferência de mais rendimento da vida activa para a vida na reforma. A este facto acresce a redução crescente das pensões públicas.

O denominador comum da aceitação da existência de dificuldades financeiras estruturais levará, julgo, mais tarde ou mais cedo, a uma reforma que envolva pelo menos os partidos do arco da governação. Um projecto global para o sistema de pensões terá que ser suportado numa base de representação social alargada. Mas o tempo não perdoa, há um sentido de urgência.

Diz o ditado popular que “a necessidade aguça o engenho”. Aplica-se neste caso? Gosto do caso da Suécia para ilustrar que é politicamente possível numa sociedade democrática fazer reformas – no caso da Suécia uma reforma politicamente difícil, mas bem-sucedida – quando as elites políticas trabalham de uma forma catalisadora, longe dos olhares mediáticos e no local apropriado, o parlamento. A forma de preparar e trabalhar uma reforma é, não sendo evidente para todos, um ponto chave.

A propósito da Suécia vale a pena as nossas elites políticas olharem para a reforma que este país empreendeu – em circunstâncias económicas e de finanças públicas semelhantes às nossas e com os mesmos problemas que enfrentamos no sistema de Segurança Social e mais concretamente no sistema de pensões – e para os resultados alcançados. A viabilidade técnica da capitalização virtual – modelo de repartição com contas individuais que registam as contribuições e as valorizam em função do desempenho da economia – está hoje bem demonstrada pela experiência sueca de reforma do sistema de pensões.

O programa da Coligação faz referência a contas individuais embora não concretize o seu alcance. Um elemento que integra o conjunto de preocupações a que a reforma deve atender, mas a necessitar de esclarecimento.

Sem particularizar, um sistema de capitalização virtual em contas individuais (a) mantém o modelo de repartição, isto é, as contribuições continuam a financiar as pensões a pagar e (b) mantém uma contribuição definida (TSU) para financiar o sistema.

O que é que muda, em traços muito gerais, em relação ao nosso sistema?

– Os planos de benefício definido – em que a pensão obedece a uma fórmula de cálculo pré-estabelecida – são substituídos por planos de contribuição definida e as contribuições do trabalhador e da entidade empregadora são registadas e valorizadas numa conta individual aberta em nome de cada trabalhador.

– A pensão é calculada à data da reforma (a) em função das contribuições acumuladas na conta individual e valorizadas ao longo do período de vida activa de acordo com uma taxa de juro que reflecte o desempenho da economia (por ex., a taxa de crescimento real do PIB ou a taxa de crescimento real das contribuições para o sistema de pensões) e (b) em função da esperança de vida naquela data.

– Existe um mecanismo (uma taxa de juro interna do sistema, por ex. a evolução do rácio contribuintes/pensionistas, rácio contribuições/pensões) que visa assegurar em permanência o equilíbrio de longo prazo e a manutenção da taxa contributiva entre gerações, garantindo a equidade do esforço contributivo ao longo do tempo.

Vejamos algumas vantagens deste sistema:

– Quanto mais tempo o trabalhador se mantiver no mercado e mais contribuições fizer na sua conta individual e melhor for o desempenho da economia, maior será o capital acumulado e, consequentemente, maior será a sua pensão.

– Reforça o princípio da contributividade, os trabalhadores são recompensados por mais contribuições que fazem para o sistema, cada euro conta para a formação da pensão.

– Ganha em transparência a relação que se estabelece entre os contribuintes e o sistema, através das contas individuais.

– Incentiva à participação formal no mercado de trabalho e à declaração de rendimentos para efeitos contributivos.

– Melhora a ligação entre o financiamento e as condições de reforma e o desempenho da economia.

– Encoraja as pessoas a pouparem para a reforma.

– Imuniza défices financeiros de longo prazo e garante a equidade entre gerações.

Uma outra vantagem importante é que os governos são obrigados a fazer a gestão actuarial e a gestão financeira de um sistema com estas características. O sistema de pensões ganha em robustez e transparência.

Num sistema deste tipo, o Estado deixa de prometer o que não pode dar. O Estado só paga o que a economia e a demografia permitem. Esta mudança de paradigma impede a transmissão de dívida para as futuras gerações, sem o que não é possível assegurar a equidade intergeracional.

Não deveríamos estar condenados à recorrente adopção de ajustamentos avulsos ou paramétricos agravando a iniquidade intergeracional e reduzindo a adequação das pensões sem ultrapassar em definitivo as ameaças à sustentabilidade do sistema de pensões, como tem sido a experiência dos últimos dez anos.

Persistir na pedagogia da reforma estrutural, como não me canso de fazer, funciona como um antídoto, embora reconheça a sua duvidosa eficácia.

(*) Avaliação Actuarial do Sistema Previdencial da Segurança Social, GEP/MSESS, Junho de 2015

(**) Ageing Group Report, Comissão Europeia, 2015

(***) Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, Orçamento do Estado