Reformar a Autoridade Marítima é algo que defendo publicamente há mais de dez anos. Por isso, é com gosto que vejo o almirante Silva Ribeiro, ex-comandante da Armada e ex-comandante dos exércitos, a defender muito do que há anos defendo.

As minhas posições são públicas e estão explicadas (por exemplo, no Observador aqui, aqui, aqui e numa tese); por isso, agora vou só comentar a proposta do alm. Silva Ribeiro. É elucidativo realçar os factos nucleares dos impulsos reformistas de 1992, 2002 e 2012.

Em 1992, o Governo decidiu reformar o Sistema de Autoridade Marítima (SAM), criado em 1984 e dirigido pelo comandante da Armada (CEMA). O Governo visou então colocar o SAM e a PM de acordo com o quadro constitucional em vigor desde 1982, e começou por colocar o SAM na dependência do ministro das Forças Armadas, chamado ministro da Defesa Nacional (nº2 do art.7º do decreto-lei 451/91). O acórdão 308/90 do Tribunal Constitucional tinha declarado inconstitucional a subordinação do pessoal da Polícia Marítima (PM) à disciplina militar. Havia que agir. O objetivo do Governo era claro, mas a argumentação não era densa nem sólida, e foi forçado a negociar com a Armada, um serviço sob a sua direção; a Armada conhecia melhor a Autoridade Marítima do que o Governo, e não queria “gerir um sistema que não lhe pertence”. O Estatuto do Pessoal da PM entrou em vigor (DL 248/95); mas a reforma do SAM falhou e, no que importava ao CEMA, nada mudou: continuou a mandar sozinho no SAM e, na prática, na PM. O ministro perdeu, e o funcionário ganhou, mesmo depois de perder vários casos em tribunal.

Miranda Calha, Secretário de Estado da Defesa (2001), ajustou a formulação da reforma que os grupos de trabalho interministeriais vinham elaborando desde 1996. Em 2002, novo Governo reformou o SAM, com alterações substantivas (destaco os DL 43/2002 e 44/2002): o SAM passou a ser só um conjunto de órgãos e serviços (incluindo a PM, a GNR e a PSP) sem um dirigente máximo; a Direção-Geral de Marinha foi substituída pela Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM), já hierarquizada e dentro do modelo orgânico-administrativo português; e foi criada a Autoridade Marítima Nacional (AMN), por inerência o CEMA, dando vida à ideia criada na Armada em 1992, para o CEMA continuar a mandar no SAM e na PM (só com poder de coordenação), e para contornar a CRP, que não permite ter um chefe militar a dirigi-los. O funcionário ganhou, de novo. (As capitanias e os capitães dos portos são parte da DGAM e não da AMN, ao contrário do que se diz.)

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Em 2012, com a Administração Marítima e a GNR firmemente implantadas no SAM, o Governo decidiu clarificar a orgânica da Autoridade Marítima: manteve a AMN como órgão de coordenação (continuou a não ser de direção), mas atribuiu-lhe o poder de decidir recursos hierárquicos em matérias de gestão corrente da PM (nº3 do art.2º do DL 235/2012), um expediente para retirar trabalho fastidioso ao ministro das Forças Armadas; atribuiu à AMN uma ideia de incorporação da PM e da DGAM (ao usar a palavra “compreende” no nº1 do art.3º do DL 235/2012); e reforçou o papel do comandante-geral da PM como seu “dirigente máximo” (nº1 do art.5º do DL 235/2012). Nada clarificou e ainda complicou mais a teia normativa (“compreende” admite a interpretação de “sob a direção”). Na prática, o CEMA continuou a mandar na parte do SAM dirigida por oficiais da Armada (PM e DGAM): tinha o poder de direção no Sistema de Busca e Salvamento Marítimo; as nomeações pelo CEMA são precárias; e apesar dos benefícios que obtêm na PM e na DGAM, as carreiras fazem-se na Armada, e ninguém ganha em desagradar ao CEMA. Continuou garantido o domínio da Autoridade Marítima pelo CEMA. O funcionário ganhou, de novo.

Aliás, desde 2015, a Armada propôs ao Governo a criação de diplomas legais para contrariar este modelo, embora explore sem pudor ambiguidades e contradições do mesmo. Destaco o “DL 234/2017”, o qual visava atribuir poderes de fiscalização aos comandantes de navios da Armada, numa clara admissão de que não os tinham (o que já era sabido internamente em 2003), ao invés do que diziam os seus dirigentes, que rejeitavam reformas do modelo – se tivessem não necessitavam de tal diploma.

Destaco agora quatro pontos do artigo do alm.Silva Ribeiro. Primeiro, o conceito da política pública que propõe não está ancorado na Constituição (CRP); e é com ela desconforme. Estará condenado, pois a CRP atribui aos exércitos só uma missão: a defesa militar da República face a ameaças externas; não se admite o exercício de funções policiais e o domínio sobre polícias, em terra, no ar e no mar. A CRP é para respeitar e cumprir: não é um menu em que se escolhe o que se gosta. De resto, o Governo ignorou a Autoridade Marítima no seu programa.

Tal como o CEMA em 1992, também usa as expressões “sinergia” e “unidade de comando”, pela boa imprensa e simpatia que suscitam nas massas, incluindo atores políticos e mediáticos, assim desviando as atenções das ambições corporativistas, e dos benefícios extraídos (vagas, prestígio e emolumentos).

Depois, acha erradamente que há economias de escala entre a Autoridade Marítima e a Armada: não há, pois são funções diferentes. As polícias começaram a surgir no século XIX, justamente por ser inadequado fazer cumprir a lei e realizar a segurança interna com exércitos, formados para operações militares. Entre polícias e exércitos pode haver economias de gama. Economias de escala há, sim, entre a PM e outras polícias de segurança e de ordem públicas (GNR e PSP). (Os conceitos têm definições rigorosas na ciência económica; não são conceitos abertos.) Não se poupa ao retirar polícias do mar, porque há um exército do mar; tal como não se retiram enfermeiros de um hospital por lá haver médicos, ou assistentes de bordo em aviões por lá haver pilotos: são funções diferentes, e ao realizar uma não se realiza a outra.

Por fim, também aponta modelos que servem o seu fim. Em 1992, os dirigentes da Armada queriam a França e o préfet maritime… Depois, era a Espanha e o Almart e até o Brasil… Alguns dizem que há países a mudar para o nosso “modelo”… Agora é a Noruega e o Chile… Vejamos a Noruega: a guarda costeira tem navios cinzentos, só para fiscalizar a pesca (sem mais funções policiais), devido à relação sempre tensa com a Rússia e à situação especial de Svalbard, para que o vizinho russo evite violar as normas da pesca. Porém, quem defende que a Armada deve fazer tudo no mar, para poupar recursos, nunca refere a guarda costeira da Grécia (criada em 1919 e inspirada na americana), um país arquipelágico e de dimensões e riqueza próximas de Portugal, e na qual o comandante da Armada nada manda.

É agora mais fácil perceber a proposta do alm.Silva Ribeiro. Por um lado, concorda com algumas fusões que sozinho venho defendendo, para melhorar a eficiência e a eficácia dos serviços que concretizam esta política pública. Mas, em linha com as posições tradicionais e corporativistas, imperialistas mesmo, dos dirigentes da Armada, deseja colocar todo o exercício da autoridade do Estado sobre os assuntos do mar sob a explícita direção de um órgão administrativo, o CEMA. Nunca o foi; nem no Estado Novo. É bem conhecida a postura dos burocratas de quererem ampliar o perímetro dos seus serviços e aumentar os recursos ao seu dispor: é a “quinta” acima do interesse público.

Em suma, adaptando uma palavra de ordem de 1961, o alm.Silva Ribeiro está a dizer “Autoridade Marítima… é nossa!”; e, parafraseando Lampedusa, propõe que tudo mude para que tudo (o que lhe importa) fique na mesma.

Basta de corporativismo. Portugal merece mais e melhor.