1. Durante meses ouvimos um coro de notáveis e menos notáveis, jornalistas e comentadores, políticos e académicos, a clamar que se salvasse a PT. Como acontece em qualquer polémica que se preze, chegou até a ser divulgado um “Apelo para resgatar a PT”, que juntou 14 assinaturas, de Bagão Félix a Francisco Louçã. Ontem conclui-se que os menos interessados no destino da empresa eram, afinal, os próprios donos: a certidão de óbito do que foi o Grupo Portugal Telecom foi passada na menos participada Assembleia Geral da empresa em mais de uma dezena de anos. A operação em Portugal vai ser vendida aos franceses da Altice e os accionistas portugueses passam a ser figurantes de terceira na brasileira Oi.
Parece um paradoxo mas diz muito sobre o país que somos: os capitalistas são tão maus a cuidar do seu capital como os contribuintes a zelar pelo seu Estado.
Esta PT não tinha solução porque salvá-la implicava resgatá-la dela própria, libertá-la deste núcleo de accionistas, dotá-la de outra gestão e, sobretudo, tirá-la desta estranha forma de estar nos negócios.
Se este foi o desfecho alcançado é porque houve quem tivesse querido aqui chegar. A sequência de erros, omissões, mentiras e atropelos às regras foi tão grande e devastadora que não pode ter sido apenas fruto de incompetência em série.
Cheguei a pensar que, por pudor, já alguém tinha retirado do site oficial da empresa o Relatório de Corporate Governance onde, ao longo de dezenas de páginas, se explicam as boas regras de gestão, controlo, auditoria, comunicação, transparência e ética que estariam em vigor na PT. Mas o documento referente a 2013 está lá, no site, e pode também ser consultado no site da CMVM, onde é de depósito obrigatório. Ali se contam pelo menos 15 órgãos e departamentos que podiam e deviam ter prevenido ou, pelo menos, alertado para o desfalque de 900 milhões materializado no empréstimo ao Grupo Espírito Santo.
Aos mais dificilmente impressionáveis pela magnitude do organograma o relatório esclarece que “este modelo de governo societário assume os valores da eficácia, simplicidade, transparência e rigor como seus pilares básicos e confere à PT uma estrutura adequada às particularidades e necessidades da Empresa e que é positivamente acolhida pelo mercado”. Esclarecidos.
E aos que, ainda assim, duvidam das boas intenções e elevados padrões da conduta das largas dezenas de administradores e quadros superiores pagos a peso de ouro que desfilam em todo o documento, o Código de Ética desfaz ambiguidades.
Das obrigações básicas constam, por exemplo, a “proteção dos interesses e direitos de todos os acionistas e na salvaguarda e valorização dos bens da propriedade das empresas que integram o Grupo PT”. Como se tem visto, a empresa nos últimos meses só tem valorizado, em defesa dos interesses de todos os accionistas.
Podemos também ficar com a “garantia do princípio da responsabilidade dos colaboradores do Grupo PT pela forma como exercem as respetivas funções”. Como se provou com a conduta de todos os que decidiram enterrar dinheiro na Rioforte.
É também assegurada a “observância institucional e individual de elevados padrões de integridade, lealdade e honestidade, tanto nas relações com os investidores, clientes e entidades reguladoras, como nas relações interpessoais entre os colaboradores do Grupo PT”. A lealdade não pode ser senão uma referência à relação entre Zeinal Bava e Henrique Granadeiro. E a integridade e honestidade foram bem atestadas por aqueles que, entre outras coisas, proibiram há dias a auditora externa de revelar responsabilidades individuais do empréstimo ao GES, a cereja que faltava em cima do bolo.
Tantas árvores mortas para imprimir e distribuir estas 121 páginas de regras de fachada.
Parece óbvio que este não era um caso de política. Mas pode ser um caso de polícia. Se alguma intervenção se pede ao Estado ela só pode ser a dos reguladores e dos órgãos de justiça criminal. Por algum motivo a CMVM quer saber quem recebeu prémios a propósito deste negócio.
2. Poucos esperariam que o Banco Central Europeu fizesse prova da sua independência afrontando a vontade da Alemanha, mas foi isso que aconteceu esta quinta-feira com a histórica decisão de compra de dívida pública dos Estados. Ao longo de cada um dos próximos 19 meses o BCE vai injectar na economia da zona euro qualquer coisa como 60 mil milhões de euros – o equivalente a um PIB português a cada trimestre. O objectivo é impedir que os preços caiam de forma sistémica, fugindo da armadilha da deflação. Para isso vão ser libertados recursos do balanços dos bancos, esperando que isso sirva para estimular o consumo e o investimento.
O risco é o de sempre: que os governos, sempre à espreita de oportunidades para relaxar, abram também os cordões da despesa pública. Para Portugal, esta é a segunda ameaça para a derrapagem das contas do Estado. A primeira é o sempre perigoso calendário eleitoral. Sabemos por experiência passada que a festa da democracia descamba com facilidade para uma orgia despesista.
* Este texto foi corrigido, anotando-se que o documento referido está mesmo no site da PT, ao contrário do que aqui foi dito inicialmente. Ficam as devidas desculpas.