A colaboração dos serviços de saúde do sector privado e social no combate à Covid-19 tem andado na ordem do dia. De um lado, diz-se que o Governo não recorre aos sectores privado e social por questões ideológicas. Do outro lado, fala-se em chantagem e na necessidade de requisição civil. Em que ficamos?

Antes de mais, importa recordar um princípio elementar da Constituição da República Portuguesa, previsto no art. 62.º, que dispõe que “A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.” Quer isto dizer que, em circunstâncias especiais, o Estado pode recorrer a meios dos particulares mesmo contra a vontade destes, mas, mesmo nesses casos, tem que pagar o valor justo. Por sua vez, a requisição civil está prevista no decreto-lei n.º 637/74 de 20 de novembro e é definida como “o conjunto de medidas determinadas pelo Governo necessárias para assegurar o regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público ou de sectores vitais da economia nacional.” Entre o elenco das situações que podem ser objeto de requisição civil, está prevista “a prestação de cuidados hospitalares, médicos e medicamentosos”.

Na história da democracia portuguesa a requisição civil foi utilizada pouco mais do que 30 vezes e sempre associada a greves. É um instrumento utilizado com muita moderação para situações em que é necessário obrigar pessoas ou organizações a colaborar com a sociedade, contra a vontade daquelas. Não há dúvida de que, numa situação de pandemia pode ser necessária a colaboração de entidades privadas. A questão é a de saber se é o Estado que não quer a colaboração dessas entidades, ou se são estas que se recusam a essa colaboração.

O primeiro confinamento foi justificado pela necessidade de dar tempo ao Estado para organizar os serviços de saúde para que, desta forma, pudessem dar uma resposta mais eficaz quando o SNS ficasse sob maior pressão. Nessa altura, foi logo colocada a questão da parceria com entidades privadas. Em março, dizia o Ministério da Saúde que “a ajuda disponibilizada pelos privados é muito importante como resposta complementar ao SNS” e deu números: “450 camas de cuidados intensivos que se podem juntar às 1124 já contabilizadas no SNS”, como se pode ver aqui. Pelo que parece, ao fim de nove meses, o Estado ainda não disse quanto está disposto a pagar por essa ajuda e as empresas privadas acabaram por suportar integralmente esses custos. O tempo foi passando e o Estado, que se saiba, nunca fez uma proposta de compensação, conforme se pode ver aqui.

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Entretanto, o discurso do Governo tem alternado entre não ser necessária a colaboração dos setores privado e social, esses setores não mostrarem disponibilidade para colaborar com o Estado e, ultimamente, a ameaça com a requisição civil.

Na segunda vaga, parecia estar tudo encaminhado para haver acordo, tendo, inclusivamente, a Ministra da Saúde reconhecido que o valor a pagar aos privados seria inferior ao custo no SNS, como se pode ver aqui. Alguns hospitais do SNS foram enviando doentes para hospitais privados, mesmo sem ter preço acordado, como se pode ver aqui. Entretanto, os números foram melhorando e o Governo acreditou que poderia dispensar a ajuda dos privados. Infelizmente, foi feita uma má gestão de risco.

A realidade mostra que o Governo nunca esteve verdadeiramente interessado em aceitar a colaboração dos privados. Foram nove meses de avanços e recuos sem ser conhecida qualquer proposta formal de parceria e valor de compensação. Em contrapartida, os representantes desses setores esclareceram várias vezes que têm disponibilidade para colaborar. Como não se pode recusar o que não se conhece, não se pode dizer que haja recusa de colaboração. Assim, com a informação existente, falar em requisição civil será necessariamente extemporâneo.

A questão que interessa é a de perceber como é que é possível que, nove meses após o primeiro confinamento, o Governo não tenha criado condições para a utilização plena da capacidade instalada e assim salvar vidas?

Perante este impasse, o decreto presidencial que declara o estado de emergência estabelece que “podem ser utilizados pelas autoridades públicas competentes, preferencialmente por acordo, os recursos, meios e estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados nos setores privado, social e cooperativo, mediante justa compensação (…)”. As duas candidatas presidenciais – Ana Gomes e Marisa Matias – manifestaram-se contra a introdução da expressão “mediante justa compensação”, como se esse requisito não resultasse já da Constituição. Das duas uma, ou não conhecem a Constituição, o que, como candidatas presidenciais, é grave, ou pretendiam que o Governo violasse a Constituição, o que é ainda mais grave. O Bloco de Esquerda fala mesmo em chantagem dos privados, como se fosse possível o prestador chantagear quem o não quer contratar…

Decorrido todo este tempo, chegámos a uma situação de catástrofe em que o SNS está perto do colapso. Além de todo o aumento da mortalidade que já era evidente, agora assistimos à tragédia dos médicos terem de decidir quais os doentes Covid ou com outras patologias que podem ou não tratar. Finalmente, o Ministério da Saúde procura agora aceitar a colaboração dos setores privado e social. Mas, mesmo assim, continua a dúvida sobre os valores a pagar. Infelizmente, parece que a prioridade não é salvar vidas. Em qualquer parceria, há um pressuposto essencial que é a boa fé das partes, pressuposto esse que tem faltado desde o primeiro dia. Quando se trata de salvar vidas, o proprietário do hospital deveria ser indiferente. Mais do que uma requisição civil de boa fé, precisávamos de uma requisição civil da boa fé da Ministra da Saúde e do Governo.