Nasci em Minsk, em 1989, então ainda União Soviética, e resido em Portugal desde 1996, o que faz com que, apesar de ter sangue 100 por cento bielorusso e uma aparência eslava, tenha um mindset e uma educação totalmente lusitana. Considero os dois países as minhas pátrias e orgulho-me de ambos, embora por razões distintas. Mas já lá vamos.

Desde criança, que me recordo que todos os verões, enquanto os meus amigos iam para o Algarve ou se ficavam pelas bonitas praias da região de Aveiro, eu viajava para Minsk, para passar pelo menos um mês com os meus avós e familiares, e muitas vezes repetia a viagem na época do Natal. Com bastante tempo disponível, lembro-me de vaguear pelas ruas de Minsk com o meu iPod, limitando-me a observar e a analisar um país que, apesar de tão familiar, me parecia tão estranho e distante.

Foi assim durante cerca de 20 anos, mas julgo que agora é altura de partilhar e relacionar algumas da minhas observações com aquilo que centenas de milhares de bielorussos têm estado a contestar durante a última semana. A sexta eleição, mais uma na casa dos 80 por cento, mais uma onde os principais candidatos da oposição são presos antes da entrega das listas (que requerem 100 mil assinaturas – em Portugal são necessárias 7500), mais uma onde o governo proibiu observadores eleitorais independentes e media internacionais. Em suma, mais uma eleição que justifica o score de 19, em possíveis 100, que é atribuído à Bielorússia pela Freedom House no que toca a liberdades civis e direitos políticos.

A injustiça social e a pobreza. Os meus pais, como os meus avós, foram professores universitários. Um dos meus avós foi também redator-chefe de um dos maiores jornais bielorussos, o outro obteve o grau académico mais alto na ex-URSS,  “Professor” na área de engenharia, tendo-se depois tornado empresário. Ambos recebem uma reforma mensal de cerca de 300 euros, valor suficiente para assegurar a sobrevivência quando se tem casa própria. Em Minsk, a maioria dos meus amigos são médicos e todos têm “salários oficiais” de 400 euros por mês – na verdade recebem o dobro em ofertas dos pacientes, uma prática normal em todos os países da ex-URSS, onde existe uma “economia paralela” muito relevante. O salário de um polícia ou de um militar, no entanto, não tendo qualquer curso superior, ronda os 600 euros mensais, sem incluir os proveitos da tal “economia paralela” que, neste caso, em média, triplicam o respetivo rendimento. A disparidade de salários pode explicar a fidelidade das forças de segurança. E, ao mesmo tempo, ao serem generosamente recompensadas, é também um sinal da sua importância para o regime.

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O receio de falar em política. Se Hogwarts foi inspirado na livraria Lello, “aquele nome que não deve ser pronunciado” deve ter sido inspirado em Lukashenko. Recordo-me que, quando conhecia pessoas novas e depois de lhes contar como era viver em Portugal, lhes fazia quase sempre a mesma pergunta: “Qual é a tua opinião sobre a situação política na Bielorússia?” Em 70 por cento dos casos, elas preferiam não falar e a rejeição era de 100 por cento quando a pergunta era feita num local público. Nas redes sociais ninguém se atrevia a fazer comentários políticos, a partilhar artigos de jornais da oposição, ou notícias de cariz político em geral.

Felizmente, nos últimos meses a situação alterou-se radicalmente. Não vou tentar analisar as razões para que tal só acontecesse agora, mas apenas contar que, atualmente, todos os bielorussos com quem tenho conexões nas redes sociais passaram a publicar, ativamente, conteúdos políticos, a relatar a violência e a apelar à democracia, numa onda de coragem e de união que nunca existiu na Bielorússia que conheço há 28 anos.

O populismo e a perceção de imagem. Recordam-se do programa Alô Presidente de Hugo Chávez? Na Bielorrússia tal não se limita a um programa semanal, mas quase a um diário do Big Brother. Todos os dias, as profícuas ações do governo abrem os noticiários dos canais públicos, enquanto as notícias sobre a Europa, os EUA, ou a Ucrânia representam maus presságios. Os conselhos de ministros e reuniões de apresentação de resultados são quase sempre transmitidas em canal direto, onde é hilariante ver Lukashenko a ajustar contas com os ministros e chefes regionais, humilhando-os publicamente por terem, por exemplo, recolhido quatro mil toneladas de trigo em vez das prometidas cinco. Os canais públicos também acompanham o presidente em visitas “surpresa” a obras públicas, numa quase fiscalização presidencial onde, no final, é recorrente o presidente ameaçar os responsáveis e dizer que se tudo não estiver como prometido ficam sem emprego. Foram vários os despedimentos de altos cargos do Estado em direto. E há que admitir que, no que toca à opressão, essa chega a todos…

Outro facto curioso é a recorrente exposição dos talentos desportivos do presidente pelas televisões estatais. Dotado de uma robusta constituição física e de uma altura de 1,88m, Lukashenko também brilha nas arenas de hóquei no gelo, onde em jogos amigáveis alinha pela seleção bielorussa, na qual, normalmente, é o autor da maioria dos golos da equipa.

Estes exemplos demonstram a estratégia de Lukashenko e dos seus assessores para transmitir a imagem de um homem do povo, forte e saudável, que respeita as tradições e é exigente com os seus subordinados. Admito que esta abordagem crie simpatizantes, principalmente oriundos das regiões mais rurais, mas também revela, no entanto, um perfil egocêntrico, autoritário e até cruel.

A modernização e revolução tecnológica. Minsk, cidade de onde sou e que melhor conheço, transformou-se muito nos últimos quatro, cinco anos. Recordo-me de sentir que era uma cidade, e um país, parados no tempo, onde verão após verão, se mantinha tudo na mesma. Os mesmos restaurantes, infraestruturas, bares, até os carros nas ruas me pareciam iguais. Hoje, mais moderna e global, foi um dos últimos países onde a Inditex conseguiu abrir lojas em 2017. Hoje, Minsk em nada fica atrás a Vilnius, Tallin, ou Riga. Mas não diria que esta evolução possa ser relacionada diretamente com uma brilhante estratégia política, ficando a dever-se, antes, a um fator histórico e cultural.

Julgo que uma das poucas coisas boas que a União Sovética deixou, foi a abordagem e importância dada à educação. Hoje, a Bielorússia colhe os frutos de um sistema de ensino exigente e adaptado ao futuro. Apesar de ser um país com uma economia tradicionalmente focada no setor primário e secundário, actualmente, são os serviços tecnológicos que mais contribuem para o PIB nacional. Minsk tem inúmeros centros de desenvolvimento tecnológico de multinacionais europeias e americanas, assim como empresas tecnológicas e de desenvolvimento de software que são líderes mundiais. Uma evolução que dotou o país de uma nova classe média, uma classe de programadores e engenheiros informáticos que trabalham na Bielorússia, mas recebem em standards europeus, rondando o salário médio, depois de impostos, os dois mil euros. A combinação do seu rendimento, da sua idade e o facto de, na maioria dos casos, trabalharem com colegas de outros países, trouxe também uma nova perspectiva, outros valores e ambições e uma nova noção de direitos e liberdades.

A falta de informação. Muitos questionam porque se sabe tão pouco sobre a Bielorússia e sobre a situação política que perdura há 26 anos. Uma das principais razões é a dificuldade dos media internacionais acederem ao país. A entrada na Bielorússia é rigorosa e só recentemente ficou mais facilitada com o visa waiver de 30 dias para cidadãos de 70 países (Portugal incluído). Mas ainda é obrigatório informar sobre a cidade e o hotel de permanência. No caso dos jornalistas, mais complexo se torna. Recordo-me que há uns anos, dois jornalistas do jornal A Bola não passaram do aeroporto Minsk-2 quando tentavam acompanhar uma equipa portuguesa num jogo de qualificação para a Liga Europa. E se tal acontece à imprensa estrangeira desportiva, é fácil imaginar se a reportagem for de cariz político ou social. Nos últimos dias poucos são os jornalistas internacionais que permanecem em Minsk. A grande maioria são russos e há ainda alguns britânicos. Ser jornalista estrangeiro na Bielorússia é, de facto, perigoso. As forças de segurança têm ordens claras para prender indivíduos que estejam nas ruas com câmaras de filmar ou de fotografar e falo com conhecimento de causa: um dos meus familiares ficou detido durante três dias por tirar fotografias num dos parques da cidade.

A esperança e o medo. Desde as eleições do passado dia 9, têm-se realizado manifestações pacíficas pró-democracia todos os dias. As pessoas consideram-se enganadas e não aceitam a falsidade dos resultados das ditas “eleições”. Os manifestantes não são apoiantes de Svetlana Tikhanovskaia, até porque ela não é a alternativa, mas, sim, a cara de toda a insatisfação e revolta pela atual situação política, um símbolo, tal como a bandeira vermelha e branca, a primeira bandeira da Bielorússia. Os últimos dias foram verdadeiramente surpreendentes, tanto por boas como por más razões. Refiro-me à coragem dos que saíram às ruas: só no último domingo, nas ruas de Minsk estiveram 200 mil pessoas, enquanto as forças de segurança prendiam e depois espancavam e torturavam milhares de pessoas (vários fontes apontam para sete mil detidos) nos hiper-carregados pavilhões e celas de detenção. Apesar da violenta carga policial, estas manifestações públicas mantiveram-se pacíficas e raros são os relatos de confrontos diretos com as forças policiais. Nunca tal manifestação pública teve lugar na Bielorússia, muito menos de cariz político, e este é, sem dúvida, um evento histórico. Os bielorussos ganharam coragem e acreditam que este é o momento da mudança e da libertação. O meu grande receio é que sem a ajuda das organizações e dos media internacionais esta chama se vá apagando e que 9,4 milhões de pessoas voltem ao ciclo vicioso da corrupção, da ditadura e do desrespeito pelos direitos e liberdades.