No outro dia, caiu-me sob os olhos uma passagem do Génio do cristianismo, de Chateaubriand, que certamente nunca havia lido, porque, se a tivesse lido, lembrava-me de certeza (nunca li o livro todo – quer dizer, nunca o li a sério). É uma passagem (terceira parte, livro 5, capítulo 3, para quem estiver interessado) dedicada às ruínas. Chateaubriand fala, a propósito das ruínas, de uma “poética dos mortos”, e escreve: “Todos os homens têm uma secreta atracção pelas ruínas. Esse sentimento deve-se à fragilidade da nossa natureza, a uma conformidade secreta entre esses monumentos destruídos e a rapidez da nossa existência”.

Não sou ninguém para discordar de Chateaubriand, e se calhar não discordo, mas a mim – que gosto de ruínas – o que me vem mais depressa ao espírito é a possibilidade de reconstruir mentalmente o edifício e a vida dos que lá viveram, como se a incompletude causada pela destruição do tempo apelasse naturalmente a uma espécie de reparação imaginária. As ruínas, de uma certa maneira, fazem ver mais o passado do que os outros edifícios, entre outras coisas porque convocam mais a imaginação. E isso vale tanto para igrejas perdidas e cobertas de vegetação selvagem em remotos lugares como para casas meio-destruídas no centro das cidades. Sou muito generoso com as ruínas.

De qualquer maneira, a parte mais importante do texto de Chateaubriand vem a seguir. Ele distingue duas espécies de ruínas. As primeiras são aquelas que são obra do tempo. Sobre elas diz belas coisas. E não está obviamente só. Basta pensar na importância do tema das ruínas na pintura, sobretudo na pintura do romantismo, mas não só nela: Claude Lorrain, Hubert Robert (que praticamente só pintou ruínas, creio), algum Caspar David Friedrich, e por aí adiante. Turner, por exemplo, pintou mais do que uma vez as ruínas, cobertas de vegetação selvagem, da Abadia de Tintern, tema indirecto (fala-se mais da natureza do que de outra coisa) de um poema de Wordsworth que é um dos maiores poemas do primeiro romantismo inglês. E, por falar de romantismo, o romantismo alemão está cheio delas, a começar pela própria escrita sob a forma de fragmentos, análogos literários das ruínas e suscitando o mesmo acto da imaginação que estas provocam.

Mas é o que Chateaubriand diz sobre o segundo tipo de ruínas que é mais interessante. As ruínas do segundo tipo são aquelas provocadas, não pela natureza, mas pelos homens. Sobre elas, escreve: “As segundas ruínas são mais devastações do que ruínas; elas não oferecem senão a imagem do nada, sem um poder reparador”. São “obra da infelicidade”, “mais violentas e mais completas” do que aquelas provocadas pelo tempo: estas últimas “minam”, as ruínas provocadas pelos homens “eliminam”.

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Juro que mesmo antes de chegar ao capítulo seguinte, consagrado, entre outras coisas, às ruínas de Palmira, já estava com o Estado Islâmico na cabeça. As cabeças de leões às quais Chateaubriand se referia foram, parece, destruídas – “eliminadas”, para utilizar as suas palavras -, e não é provável que os descendentes dos camelos das caravanas que por ali passavam e que Chateaubriand achava magníficos, imóveis no meio das ruínas, se aventurem agora por aquelas paragens. Trata-se mesmo de “devastação”, “eliminação”, redução de tudo a uma “imagem do nada, sem um poder reparador”.

Ora, estas palavras de Chateaubriand definem na perfeição o próprio programa do Estado Islâmico. A barbárie sem nome daquela gente obedece a uma lógica que é a da pura devastação que não deixa subsistir poder reparador algum. As imagens das degolações, individuais ou em massa, lembram ainda mais, é claro, essa lógica do nada. Como a fuga desesperada de populações inteiras. Ou as várias chacinas que se multiplicam. Tudo deve ser resumido a uma imagem do nada. Dir-se-á que se trata apenas de mais um episódio na longa história da loucura humana, e muito, muito, longe de ser aquele que mais vítimas causou. Certamente, mas é um episódio que tem em si algo de particularmente sinistro. E que nos faz pensar no modo como o Islão dos nossos dias se deixa, em sucessivas vagas, tão facilmente capturar por uma espécie de mal radical. Cada vez mais radical, de resto. Cada vez mais perto da redução de tudo a uma imagem do nada.

Por isso é que é preciso mesmo acolher as pessoas que fogem daquilo. Não que não se perceba o ancestral medo provocado pelas grandes migrações. Por mim, ainda me lembro da confusão mental que no princípio do liceu me causou aquela história dos alanos, suevos e vândalos aterrarem por cá – fugidos dos hunos, se não estou em erro. Mas, sem entrar na demonização do comportamento dos países europeus (mesmo da Hungria) face a esta crise, exercício que delicia muita gente e que mostra, para quem não o soubesse, como o bem pode ser superficial, convém não esquecer aquilo de que uma boa parte dos migrantes foge. Tem um nome: horror.

Mas o essencial não está por cá – está por lá. E o que está por lá é de recear que não tenha solução e que as migrações continuem, o que quer que se faça por cá. Não se percebe como inventar uma cura para o mal radical que habita uma parte do Islão. Parece que isolá-lo é o melhor que podemos fazer, à falta de soluções utópicas, como, por exemplo, um torneio entre o Estado Islâmico e a Al-Qaeda no meio das eternas dunas do Saara. Mas mesmo o isolamento não garante nada, e as sociedades decentes não se constroem por decreto mágico. E por ali, por aquelas bandas de horror, era mesmo preciso um decreto mágico que funcionasse a sério. Bom, aproveitemos enquanto podemos as nossas ruínas provocadas pelo tempo. Chateaubriand tinha razão: elas são o exacto contrário de uma imagem do nada.