A agressão à Ucrânia veio criar uma clivagem geopolítica entre Ocidente e Rússia, isolando quase por inteiro a economia russa dos mercados ocidentais e compelindo Moscovo a dirigir a sua atenção a outras regiões do globo. É assim que, ainda em Maio, Lavrov veio dizer que a Rússia iria cultivar parcerias a sul e a oriente, e que Putin veio depois dizer que o Kremlin pretendia reorientar-se para Ásia, África e América Latina. Deste modo, e ao longo dos últimos meses, Moscovo procurou fomentar laços com estas regiões pela organização de um número de eventos internacionais: isto incluiu uma receção na sede da missão russa na ONU, dois fóruns económicos, uma conferência de segurança e até exercícios militares em território russo. O próprio Putin tem sido um participante ativo em cimeiras internacionais, como sejam as recentes cimeiras do Cáspio e da Organização de Cooperação de Xangai, e Lavrov visitou China, Índia, África, Golfo e Sudeste Asiático.
Da mesma forma, a Rússia tem estado a reorientar as suas exportações energéticas para a Ásia, onde tem expandido laços comerciais e infraestruturais com a China e negociado cooperação Rússia-Mongólia-China. A China já veio, de resto, disponibilizar-se para cooperar com Moscovo em prol do desenvolvimento do mercado energético global, o que levanta questões sobre as perspetivas de colaboração futura entre os dois países no setor energético.
Cultivar relações também passa por controlar a narrativa. É assim que Moscovo tem vindo a visar África, Ásia e América Latina com desinformação a racionalizar a agressão à Ucrânia, a incentivar simpatia para com a Rússia e a fomentar sentimento anti-ocidental. Degradar a imagem do Ocidente é, de resto, uma predileção de Moscovo. É assim que Lavrov veio alegar que o Ocidente impôs uma “divisão racista do mundo”, e que Putin, na Cimeira do agrupamento asiático CICA, representou o Ocidente como sendo uma força neocolonial interessada em explorar países mais pobres.
Foi também durante a Cimeira da CICA que Putin propôs a Erdogan um acordo para a distribuição internacional de gás russo através da Turquia. Erdogan aceitou a proposta pouco depois. Não obstante esteja na NATO, e apoie firmemente a Ucrânia, a Turquia mantém relações cordiais com o Kremlin, o que lhe tem permitido desempenhar um papel de mediação entre Kyiv e Moscovo. Porém, não aderiu às sanções e tem cultivado o comércio com a Rússia, o que veio gerar algum desconforto entre os aliados. Uma relação com Ankara é claramente de grande utilidade estratégica para o Kremlin. A Turquia é, afinal, uma potencial porta de entrada para comércio com a Europa, e é dotada de influência na sua vizinhança regional.
Depois, há África. Da invasão em diante, Moscovo tem cortejado o continente por meio da preparação de uma cimeira Rússia/África, da visita de Lavrov e, do encontro de Putin com o presidente da União Africana. A Rússia veio, de resto, e ao longo da última década, a construir alguma influência em África, e mantém relações especialmente fortes com os regimes de Sudão, Mali e República Centro-Africana. Este estudo para o Instituto Tony Blair (págs. 25-26) aponta que, em África, Moscovo pretende presença geoestratégica para fazer frente ao Ocidente e ainda que está em vias de adquirir capacidades navais nas costas africanas. Depois, é mencionado que uma presença aumentada em pontos-chave do continente dará ao Kremlin acesso a rotas migratórias essenciais e, dessa forma, a capacidade para criar crises humanitárias e políticas à Europa. Ao estudo, acrescente-se que uma presença expandida de Moscovo no Sahel poderá vir a inviabilizar o abastecimento de gás nigeriano à Europa através de gasodutos regionais.
Do outro lado do Atlântico, a América Latina, onde a Rússia continua a cultivar relações com os regimes autoritários de Cuba, Venezuela e Nicarágua. E, na Ásia, Moscovo tem forte apoio da Coreia do Norte e da junta militar em Myanmar, cujo líder agraciou até Putin como sendo “um líder do mundo, uma vez que controla e organiza a estabilidade ao longo de todo o globo.” Por sua vez, o Vietname, não obstante ser uma das mais vigorosas economias emergentes no Sudeste Asiático, é também um associado histórico de Moscovo, já se tendo assim aberto à expansão de cooperação comercial com a Rússia. Há ainda o Irão, cujo regime tem vindo a tornar-se mais repressivo, mesmo enquanto é acusado de fornecer drones à Rússia. Rússia e Irão têm estado a aprofundar relações e são parceiros no desenvolvimento do INSTC, um corredor de transporte de mercadorias a estender-se da Rússia ao Golfo Pérsico, e, daí até à Índia. O INSTC tem claro potencial para abrir os mercados do Indo-Pacífico à Rússia e para expandir a influência geopolítica de Moscovo na região.
Enquanto aprofunda laços com o Irão, a Rússia também tem estado a reforçar relações com os rivais regionais dos iranianos: Arábia Saudita e Emirados, parceiros de Moscovo na controversa OPEC+. A aproximação a iranianos e árabes dá, à Rússia, maior relevância no Médio Oriente. O peso de Moscovo na região também deverá ser favorecido pela sua presença na Organização de Cooperação de Xangai, que está a intensificar laços com o Irão e com países árabes. E há ainda a União Económica Eurasiática, que abrange a Rússia e quatro outros estados da ex-URSS, e que está a cultivar relações com o Médio Oriente, mas também com Sudeste Asiático e África.
Porém, o maior parceiro potencial da Rússia é a China. Não obstante apelar à paz na Ucrânia e repudiar as ameaças nucleares de Putin, Pequim não condenou a agressão e ofereceu veemente oposição às sanções. Da invasão em diante, e para além da aproximação comercial mútua, os dois países têm vindo a desenvolver uma relação estratégica mais estreita, e a aprofundar cooperação militar, com NATO e Pentágono a expressarem preocupação pela crescente parceria sino-russa.
Note-se ainda que Rússia e China estão a reduzir o uso do dólar e do euro no comércio mútuo e, segundo Lavrov, pretendem criar uma infraestrutura financeira independente – com Moscovo a ter arranjos similares com Irão e Myanmar. Isto é uma forma óbvia de evadir as sanções. Porém, também é verdade que já há anos que a Rússia vem a reduzir o uso do dólar, incluindo no comércio com a China. Sergey Glazyev, próximo do Kremlin, propõe até a criação de uma nova arquitetura monetária internacional como forma de constranger o Ocidente, e advoga lançar tal arquitetura através dos BRICS (que, para além de Rússia e China, também incluem Brasil, Índia e África do Sul). Em Junho, na Cimeira BRICS, Putin flutuou a ideia da criação de uma nova moeda de reserva internacional, sob a égide dos BRICS. A ideia não foi adotada na Declaração da Cimeira, mas o fato é que foi lançada, e esse parece ter sido o propósito de Putin. Na mesma Cimeira, Xi Jinping sugeriu expandir o grupo com novos estados-membros. Não obstante, também exortou os BRICS a rejeitarem “hegemonia” e “dominância unilateral”, no que pareceu uma tentativa de reorientar o agrupamento para oposição aos EUA e aos seus aliados. É porém difícil conceber Brasil, Índia e África do Sul a seguirem desígnios anti-ocidentais. Algumas vozes indianas já se manifestaram contra tal cenário, com Sashi Tharoor, ex-Subsecretário Geral da ONU, a dizer que o uso dos BRICS em prol da ascensão de um eixo China-Rússia levaria a Índia a sair do grupo.
A Índia absteve-se de condenar a Rússia na ONU, não obstante expresse desconforto pela guerra, com Modi a asseverar a Putin que esta “não é uma era de guerra”. A Rússia quer envolver a Índia em cooperação Rússia-Índia-China, presumivelmente para contrariar os EUA no Oriente. Uma tal conjuntura parece, porém, improvável. Delhi tem laços relevantes com Moscovo, mas o fato é que não os tem com a rival regional Pequim. E, mantém excelentes relações estratégicas e comerciais com EUA, Japão e Austrália, mesmo enquanto aprofunda vínculos com UK, UE e Canadá. É estrategicamente indispensável que o Ocidente corteje mais e melhores laços com a Índia.
Face às movimentações internacionais de Moscovo, o Ocidente tem de intensificar a interação diplomática com os seus parceiros ao longo do mundo, como sejam União Africana, Índia, Brasil, Golfo e ASEAN. E, claro, tem de trabalhar com os mesmos para construir relações dinâmicas e resilientes. Iniciativas como a Parceria para Infraestrutura e Investimento Global, do G7, e a Global Gateway, da UE, serão instrumentais para o avanço de tal propósito.