A agressão à Ucrânia e os boicotes e sanções daí advindos já estão a isolar a economia russa do Ocidente e a compelir a Rússia a procurar novos horizontes. Isto mesmo foi explicitado pelo apelo de Putin para o redireccionamento das exportações de energia russa para os mercados emergentes a sul e a oriente. Aqui, o foco essencial de Moscovo é inevitavelmente o sistema asiático, no qual a Rússia se insere e no qual veio a envolver-se substancialmente ao longo da última década, pela expansão de laços com China, Índia, Sudeste Asiático, Médio Oriente e Golfo. Em particular, Moscovo veio a desenvolver uma parceria próxima com Pequim, aos níveis económico, político e militar, com esta parceria a ser reforçada a 4 de Fevereiro, quando Xi e Putin declararam que os dois estados expandirão a sua cooperação e agirão em conjunto no sistema asiático.

Desde o início da invasão, o comércio Rússia-China tem vindo a crescer, a China tem aumentado as suas importações de gás, carvão e petróleo russos e os laços infraestruturais entre os dois países têm vindo a ser expandidos. A China já veio dizer que reforçará laços com a Rússia em energia, finança, C&T e no setor técnico-militar e, ainda em Março, pouco após a invasão, Wang Yi, ministro dos Negócios Estrangeiros (MNE) chinês, afirmou que os dois países manterão “foco estratégico” e cultivarão “uma parceria abrangente”. De resto, o recente exercício militar conjunto durante a visita de Biden ao Japão foi uma clara asserção de coesão sino-russa.

É muito possível que se esteja, já hoje, perante o nascimento de um eixo geopolítico China-Rússia. Um tal eixo tenderia a agregar toda uma série de estados alinhados e a visar a transformação autocrática da ordem internacional. Procuraria ainda harmonização de interesses ao longo da Ásia, sob égide sino-russa, um cenário que levaria à drástica redução de influência ocidental na região.

Com efeito, Rússia e China estão ativamente interessadas em constranger o Ocidente. Uma linha que tenderão a seguir é a de desafiar a dominância do dólar e das restantes moedas ocidentais, sendo que qualquer redução expressiva dessa dominância teria sérias sequelas para o ocidente em si. China e Rússia passaram os últimos anos a ‘desdolarizar’ o comércio entre ambos e a China parece estar a negociar compras de crude à Arábia Saudita em yuan, algo que, a acontecer, poderia criar um efeito dominó para o petrodólar e, daí, para o próprio dólar como moeda de reserva global.

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Moscovo, por sua vez, gostaria de cooptar os BRICS (as cinco maiores economias emergentes) para que expandam o uso das suas moedas nacionais no comércio internacional, em detrimento do dólar. É assim que Lissovolik, do Clube de Valdai, alinhado com o Kremlin, surgiu recentemente a promover um programa do mesmo Valdai para esse exato propósito. O Kremlin também fala através de Sergey Glaziev, que advoga isolar o Ocidente pela criação de uma nova arquitetura financeira internacional para países alinhados com Rússia e China: estes países deixariam de usar o dólar em prol de moedas nacionais e de ouro físico, que, constata Glaziev, “é produzido em abundância na Rússia”.

Moscovo já parece estar a mover o rublo para o padrão-ouro, algo que forçaria atores externos a pagar rublos com ouro para comprar recursos russos. Isto, se mimetizado pela China, que tem vindo a acumular ouro, poderia impor drásticas descontinuidades à estrutura monetária global.

China e Rússia fazem parte da Organização de Cooperação de Shangai (OCS), que, a abranger também Índia, Paquistão e quatro estados centro-asiáticos, engloba quase metade da população mundial. A 22 de Março, Zhang Ming, secretário-geral da OCS, reuniu-se com a estatal russa VEB.RF para criticar as “sanções unilaterais ilegais” e expressar a prontidão da OCS para prestar “todo o tipo de apoio à VEB.RF” no espaço OCS. A OCS tem vindo a trabalhar no aumento do uso de moedas nacionais em comércio externo e, de Março em diante, tem vindo a avançar a implementação de um tratado para consolidação de relações regionais.

A 26 de Maio, Putin veio avançar a ideia de uma parceria pan-asiática a agregar OCS, ASEAN e outras aglomerações regionais. Esta proposta foi colocada em perspetiva por Kosachev, do Conselho da Federação, na Rússia, que, ao falar de uma tal parceria, disse que a mesma poderia ser usada para isolar o Ocidente.

É incerto se a generalidade da Ásia virá a apoiar a Rússia na sua reorientação a Oriente. Os países asiáticos têm, na sua larga maioria, respeitado as sanções, embora evitando condenar assertivamente Moscovo: como visto a 7 de Abril na ONU, quando quase toda a Ásia evitou votar contra a Rússia.

O fator essencial de imprevisibilidade na Ásia é a Índia, uma potência nuclear que é, já hoje, uma das maiores economias do mundo. A Índia tem fortes laços com a Rússia que, desde a era soviética, tem sido sua parceira estratégica face à China. Porém, isso tenderá a deixar de ser verdade com o presente alinhamento sino-russo. Isto é algo que poderá vir a impelir a Índia mais para ocidente ou que, em contraste, poderá levá-la a harmonizar relações com a China.

Até aqui, e desde a invasão da Ucrânia, a Índia tem vindo a expandir as suas importações de gás, petróleo, carvão e fertilizantes russos, com Delhi a encorajar estatais indianas a investir no setor petrolífero russo e a discutir transações rupia-rublo com Moscovo. Porém, e em simultâneo, a Índia também tem vindo a fortalecer relações com UE, UK e Quad, tal como veio a aderir ao Quadro Económico Indo Pacífico. É assim possível que os indianos estejam a tentar manter a sua condição tradicional de potência autónoma e não-alinhada.

A reorientação asiática da Rússia também passa pela consolidação da União Económica Eurasiática (UEE), o bloco económico que, de 2015 em diante, veio a ser criado em espaço pós-soviético. A UEE agrega Rússia, Bielorrússia, Arménia, Cazaquistão e Quirguistão e, da invasão em diante, tem vindo a desenvolver laços com a OCS e com a CICA, o fórum asiático a abranger 27 países. Tem também adotado medidas de resiliência para lidar com os impactos regionais das sanções e está a trabalhar em integração aumentada, substituição de importações, cooperação industrial e comércio externo pelo uso de moedas nacionais. A UEE está ainda a desenvolver a infraestrutura regional de transportes, o que inclui o Agroexpress, que transportará bens agroalimentares para a China.

A UEE é complementada pela Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), o bloco militar regional estabelecido em 2002. A OTSC está a aprofundar laços com a Organização de Cooperação de Shangai e a China já se mostrou interessada em cooperar com a OTSC. Ainda por ocasião da recente Cimeira da OTSC, a 16 de Maio, foi dito que a mesma será expandida com novos membros, parceiros e observadores e, umas semanas antes da guerra, Pankin, do MNE russo, dizia que a OTSCdevia estar presente na arena global” e que “os nossos muitos parceiros”, dão sinais “de estar prontos para cooperar”.

Parece ser claro que o Ocidente tem de dirigir apelos convincentes aos países que tenderiam a alinhar com Rússia e China. Isto passa largamente pela oferta de programas conjuntos de comércio e desenvolvimento. O Quadro Económico Indo Pacífico já é um primeiro passo nesse sentido.