Cabe aos políticos analisar, na perspectiva do poder, a questão bélica; compete aos juristas estudar, segundo as normas do Direito Internacional Público e as convenções de direitos humanos, os conflitos armados; e corresponde aos militares examinar as guerras, em função da táctica e da estratégia. Os sacerdotes, que não se podem imiscuir em questões de natureza política, jurídica ou militar, devem promover o desígnio divino da paz e analisar, desde o ponto de vista ético, a guerra.
Talvez os partidários da Federação Russa entendam que a mera hipótese de a Ucrânia integrar a NATO seja já uma provocação suficientemente grave para justificar a agressão militar. Por sua vez, a Ucrânia, que tem territórios seus ocupados pela Rússia, também pode invocar a necessidade de fazer parte dessa aliança militar, como único modo de garantir a sua sobrevivência, soberania e integridade territorial.
Qualquer que seja o argumento de que as forças beligerantes se queiram servir para justificar o recurso às armas, já pouco ou nada importa, porque a invasão militar da Ucrânia pelas tropas russas constitui, de per si, uma injustificada agressão, que viola a soberania de um Estado livre, bem como o Direito Internacional. Neste sentido, a razoável suposição de que a invasão russa tipifica uma declaração de guerra, obriga a concluir que a resposta ucraniana consubstancia um acto de legítima defesa.
Muito embora a guerra contrarie os princípios do Direito e da Justiça, porque substitui a força da razão pela razão da força, deve respeitar exigências éticas. Como adverte a Constituição pastoral Gaudium et Spes (GS), do Concílio Vaticano II, “uma vez lamentavelmente começada a guerra, nem por isso tudo se torna lícito entre as partes beligerantes” (nº 79). Porém, a inexistência de uma autoridade internacional, com capacidade efectiva de impor princípios morais, ou sanções, em situações desta natureza, compromete a sua aplicação.
“O quinto mandamento [da Lei de Deus, Não matarás,] proíbe a destruição voluntária da vida humana”, nomeadamente através da guerra. Como afirma o Catecismo da Igreja Católica (CIC), “por causa dos males e injustiças que toda a guerra traz consigo, a Igreja exorta instantemente a todos para que orem e actuem para que a Bondade divina nos livre da antiga escravidão da guerra” (nº 2307). Assim o tem dito, repetidas vezes, o Papa Francisco, que convocou, para a passada quarta-feira, o dia em que começou a Quaresma, um jejum mundial pela paz na Ucrânia.
Não obstante a obrigação de evitar os conflitos, admite-se uma excepção: “não se pode negar aos governos, esgotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legítima defesa” (GS, nº 79). Mas só é legítima a defesa armada quando a ofensa causou um prejuízo “duradouro, grave e certo”; forem ineficazes todos os meios pacíficos de resolver o conflito; houver alguma possibilidade de êxito; e “o emprego de armas não traga consigo males e desordens mais graves do que o mal a eliminar” (CIC, nº 2309).
Que exigências éticas, em caso de guerra, os governos e os seus exércitos devem cumprir? “Devem ser respeitados e tratados com humanidade os não-combatentes, os soldados feridos e os prisioneiros. As acções deliberadamente contrárias ao direito dos povos e aos seus princípios universais, bem como as ordens que comandam tais acções, são crimes” (CIC, nº 2313). Por não terem respeitado, durante o conflito armado, estes princípios éticos, depois da Segunda Guerra Mundial, alguns militares do regime nazi foram condenados por crimes de guerra.
Como é sabido, muitos dos acusados pelos tribunais internacionais de Nuremberga e de Tóquio, invocaram o dever de obediência aos seus superiores hierárquicos, para se eximirem da responsabilidade criminal pelas atrocidades cometidas na guerra. É, contudo, uma desculpa que não colhe porque “uma obediência cega não basta para desculpar” os que se submetem a ordens iníquas. “Assim, o extermínio de um povo, duma nação ou duma minoria étnica deve ser condenada como pecado mortal. É-se moralmente obrigado a resistir às ordens para praticar um genocídio” (CIC, nº 2313).
Se é verdade que houve crimes de guerra por parte dos exércitos vencidos em 1945, nomeadamente o nazi e o japonês, também os vencedores cometeram acções que são, à luz da ética cristã, censuráveis. “Toda a acção bélica, que tende indiscriminadamente à destruição de cidades inteiras, ou vastas regiões com os seus habitantes, é um crime contra Deus e o próprio homem, que se deve condenar com firmeza, sem hesitação” (GS, nº 80). Neste sentido, os bombardeamentos aliados das cidades alemãs de Dresden, em que numa só noite morreram cerca de 20 mil civis, e Leipzig, merecem também reprovação.
“Um dos perigos da guerra moderna é o de oferecer aos detentores das armas científicas, nomeadamente atómicas, biológicas ou químicas, ocasião para cometer tais crimes” (CIC, nº 2314). O uso da bomba atómica em Hiroxima e Nagasáqui foi, sem dúvida, extremamente eficaz, na medida em que apressou a rendição japonesa. Contudo, do ponto de vista ético, o uso de uma tal arma contra povoações civis é condenável.
Na guerra, “os poderes públicos têm, neste caso, o direito e o dever de impor aos cidadãos as obrigações necessárias à defesa nacional. Aqueles que se dedicam ao serviço da pátria na vida militar são servidores da segurança e da liberdade dos povos. Na medida em que desempenharem como convém esta tarefa, contribuem verdadeiramente para o bem comum e para a salvaguarda da paz” (CIC, nº 2310). Mas os poderes públicos têm de respeitar “o caso daqueles que, por motivos de consciência, recusam o uso das armas; estes continuam obrigados a servir, de outra forma, a comunidade humana” (CIC, nº 2311).
Durante a Primeira Guerra Mundial, quando muitos soldados portugueses combatiam em França, uma ‘Senhora mais brilhante do que o Sol’ disse a três crianças analfabetas: “Rezem o terço todos os dias, para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.” O Presidente Ronald Reagan, num memorável discurso na Assembleia da República, disse estar convencido de que aqueles três pastorinhos tinham contribuído de forma muito eficaz para o fim da guerra mundial. Oxalá também nós, seguindo o seu exemplo, alcancemos “a paz para o mundo e o fim da guerra” na Ucrânia.