A não eleição de Augusto Santos Silva é um daqueles acasos cósmicos carregados de ironia que nos deviam fazer a todos refletir. A começar, precisamente, pelo Partido Socialista. Afinal, o homem que mais se esforçou por tentar criar uma bipolarização artificial com André Ventura como forma de alimentar os seus sonhos presidenciais acabou engolido pelo próprio Chega e foi forçado a sair pela porta pequena, sem brilho e sem grande comoção – fora e, mais revelador, dentro do seu partido. Era por isso importante que os socialistas apreendessem esta lição: se insistirem na estratégia de agigantar Ventura para fragilizar a direita, é bem provável que conheçam o mesmo destino de Augusto Santos Silva. Até porque a morte dos partidos tradicionais nem sequer é uma excentricidade do sistema político português.

Quanto a Santos Silva, seria de esperar que, na hora da despedida, alguém que se descreve como “cientista profissional” se esforçasse por perceber, pelo menos em parte, as causas da derrota do PS e do crescimento do Chega nestas eleições legislativas. Nem por isso. Para surpresa de cerca de zero pessoas, segundo Santos Silva, as responsabilidades desta hecatombe são de todos menos, adivinhe-se, do Partido Socialista e dele próprio.

Ainda antes de se conhecer a sua não eleição, mas quando os dados já apontavam nesse sentido, Augusto Santos Silva escreveu um artigo de opinião no Público onde enunciava as causas da “derrota honrosa” do PS – o partido perdeu quase meio milhão de votos em dois anos e teve o seu pior resultado desde 1987 – que é todo um tratado de desresponsabilização.

Causa número um: a cabala do Ministério Público. Argumenta Santos Silva que o PS enfrentou estas eleições “nas piores condições políticas, com um governo demitido por intervenção judicial”. Nunca é demais recordar que o primeiro-ministro cessante tomou a decisão de se demitir e reafirmou, quase um mês depois, em entrevista à CNN, a 11 de dezembro, que o faria com ou sem o tal parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República. “Houve factos novos que podiam ter contribuído seriamente para que tivesse tomado esta decisão independentemente do comunicado”, disse António Costa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E esses factos foram os seguintes: Vítor Escária, homem a quem o socialista confiou uma das funções mais sensíveis do Governo apesar da prudência aconselhar o contrário, tinha 75.800 euros escondidos em envelopes, livros e caixas de vinho na residência oficial. Independentemente da opinião que se possa ter sobre o processo em causa, e é um processo que merece muita reflexão, que se saiba, não foi mão judicial a esconder generosa maquia em São Bento. Mas os factos importam pouco.

Causa número dois: a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa. Escreve Santos Silva que “houve eleições desnecessárias forçadas pelo Presidente da República”, fazendo valer a tese de que António Costa poderia perfeitamente ter sido substituído, preservando a maioria absoluta. Esta afirmação tem três problemas: um histórico (o PS nunca aceitou a sucessão de Durão Barroso por Pedro Santana Lopes); um de contexto (Marcelo, bem ou mal, avisou desde o início que esta maioria dependia da continuidade de António Costa); e um de cinismo.

No final de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu anunciar preventivamente a dissolução da Assembleia da República perante a dramatização de António Costa em torno do Orçamento do Estado, sem que a isso estivesse obrigado, precipitando uma crise que poderia ter sido evitada. Nessa altura, não houve muitos socialistas a clamarem contra “eleições desnecessárias forçadas pelo Presidente da República”. Resultado: o PS foi o maior beneficiário líquido dessa crise política e conseguiu uma maioria absoluta que esvaziou a esquerda, reduziu o PSD a mínimos olímpicos e deu 12 deputados a Ventura. O critério para dissolver Parlamentos não pode estar dependente do resultado que o PS venha a ter nas urnas.

Causa número três: “A antecipação da sucessão interna [no PS]”. Neste ponto, é perfeitamente possível reconhecer-se que Pedro Nuno Santos não teve tempo suficiente para se afirmar como líder do partido e que isso prejudicou as ambições dos socialistas. O combate interno travado imediatamente antes das legislativas, expondo as feridas que existiam e que existem no PS, não terá ajudado, naturalmente. Mas talvez seja interessante recordar que Augusto Santos Silva desempenhou um papel nessa contenda.

Não só apoiou José Luís Carneiro, o que é perfeitamente legítimo, como disse que o fazia porque este demonstrava a “prudência”, a “empatia”, a “maturidade” e a “paciência” necessárias para o cargo. Sintomaticamente, estes atributos psicológicos (ou a alegada falta deles) seriam usados contra Pedro Nuno Santos pelos seus adversários à direita. Talvez se o processo de sucessão interna tivesse sido mais elevado, o resultado nas legislativas fosse outro. Ninguém sabe. Mas a culpa não será seguramente dos eleitores que assistiram à campanha que muitos destacados militantes socialistas fizeram contra Pedro Nuno Santos — e se deixaram convencer por ela.

Causa número quatro:  “O ambiente mediático negativo”. Sem grande surpresa, Augusto Santos Silva, que nunca perdeu uma oportunidade de defender José Sócrates contra o “jornalismo de sarjeta” que tentava a todo custo organizar o “assassinato político e moral” do antigo primeiro-ministro (até deixar de o defender, naturalmente, mas sem perder muito sono com isso), aparece a responsabilizar a comunicação social pela derrota do PS nas urnas. A culpa é do árbitro, vem nos livros e reconforta o espírito, independentemente de ter ou não adesão à realidade. Não se pode mudar a natureza de ninguém.

Causa número cinco: “A hostilidade de várias corporações profissionais e a criação ostensiva de um clima de caos e insegurança”. Igualmente sem grande surpresa, não seria de esperar que o homem que se chegou a referir à concertação social como uma “feira de gado” demonstrasse grande apreço por haver quem, de forma organizada, pressione o governo em funções a ceder e a responder a determinadas reivindicações, mais e menos justas. Chama-se democracia.

Curiosamente, e presumindo que Santos Silva se refere aos profissionais de saúde, aos professores e aos elementos das forças de segurança, o mesmo PS que governou os últimos oito anos descobriu, antes, durante e depois da campanha, que grande parte dessas reivindicações são legítimas e que há margem para as acomodar. Pergunta-se então: a culpa é de quem? De quem se queixou ou de quem descobriu, talvez demasiado tarde, que as queixas eram justificadas? Aparentemente, e ao contrário de grande parte do PS, Augusto Santos Silva ainda não terá descoberto a resposta.

Santos Silva não terá encontrado essa resposta, mas, nesse mesmo artigo, diz aquilo que o PS deve ser e deve fazer neste novo ciclo político. Só não diz que o PS deve refletir sobre aquilo que não foi durante os oito anos de governação. Se a culpa é do Ministério Público, se a culpa é de Marcelo, se a culpa é da disputa interna, se a culpa é da comunicação social e se a culpa é das corporações, então, a culpa não será seguramente do PS.

Talvez porque Augusto Santos Silva, depois de quase três décadas com lugar cativo entre as primeiras linhas socialistas – é, depois de António Costa, a figura que passou mais tempo como governante –, nunca tenha querido fazer com seriedade a reflexão sobre os erros que o partido possa ou não ter cometido depois de ter governado em 23 dos últimos 30 anos. Nem depois de ter sido “cão de guarda” (palavras do próprio) de José Sócrates. Por tudo isto, a saída de Augusto Santos Silva é uma oportunidade para o PS: um convite à reflexão interna sem atalhos, sem cinismos e sem desculpas.