É extremamente desagradável alguém ser confrontado no espaço público com insultos,  imputações falsas, libelos inflamados repletos de erros factuais, ortográficos e semânticos,  reclamações violentas, insinuações e ameaças. O Hospital de Santa Maria, os seus médicos e  outros profissionais, são visados nas redes sociais por todas aquelas modalidades de apreciação,  de um modo constante e que já foi para lá de toda a paciência da sua administração. A ULS Santa  Maria considerou que era demais e propôs-se tomar medidas que, no limite, podem levar à  instauração de processos judiciais a quem abuse do direito de crítica. Respeitará uma censura se  ela tiver fundamento, não aceitará que ela seja feita de forma ofensiva – pela linguagem ou por  conteúdo falso e insultuoso.

Entretanto, a administração da ULS Santa Maria viria a mostrar-se sensível aos argumentos em  contrário e está de novo em ponderação. É possível que reclamações e agravos continuem a ser  tratados com a discrição do costume. Mas não será impensável que outra instituição, ou a mesma,  venha um dia mais tarde a reconsiderar, a recuar nos recuos e a incendiar de novo a relação entre  utentes e prestadores de serviços.

A ULS Santa Maria não está sozinha na sua desesperação. A ofensa pública é cada vez mais  frequente e descarada. Porque o seu palco se alargou com as redes sociais e porque se encolheram  até à dimensão do átomo grego o bom-gosto e a educação. Pode acontecer que o insulto suscite  um enxovalho, uma desafronta dirigida ao nariz de quem ofendeu, ou o menosprezo. Já é mais  raro, ou será inédito, que alguma vez tenham sido consideradas medidas tão drásticas por parte de  uma instituição de saúde.

A opção da ULS Santa Maria, agora a ser reconsiderada, merece compreensão. Mas é de utilidade  discutível. E, numa questão tão sensível, a utilidade confunde-se com o acerto. O acerto neste  caso compreende igualmente a sisudez e a prudência, que não podem ser depreciados na postura  da Medicina. Compreende a proporcionalidade, para não dar relevância ao que pode ser tratado  com discrição. Compreende a indulgência, para não estimular um clima de confronto entre  doentes e agentes de saúde.

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Este duelo agora ajustado entre a má educação e o melindre promete não ter consequências de  maior. Tanto uma como o outro vão sobreviver com pequenos ferimentos – se a opção pelo litígio  judicial vier a prevalecer… – porque é da natureza da má educação não se corrigir e é da vocação  do melindre encontrar sempre causas justas para se apresentar. E depois, esta questão é apenas  uma árvore pertinaz, sendo que é muito mais frondosa a floresta do problema.

O ambiente de animosidade entre utentes e agentes de saúde tem vindo a aumentar e o desabafo  do Santa Maria reflecte essa conflitualidade doentia e perigosa. Sempre esteve latente de modo  residual mas, nos últimos anos, tem-se tornado mais notória e ostensiva. Não é apenas nas redes sociais que os doentes se expressam com violência. Fazem-no nos centros de saúde e nos serviços  de urgência, nos balcões de atendimento, nos corredores das enfermarias. É uma atmosfera espalhada e inquietante. O aperto da honra em que se vê a ULS Santa Maria existe neste caldo  mórbido, não se resolverá fora dele.

A relação entre doentes e agentes de saúde – particularmente médicos – é delicada. Não é natural,  não é simples e não é pura. A mais nuclear e condicionadora de todas as particularidades é a  desigualdade. É na desigualdade, na assimetria, nessa profundidade da relação entre doentes e  cuidadores que existe a predisposição para o conflito. Aquilo que faz com que esse conflito se  torne patente é apenas acidental – atrasos, indelicadeza, ignorância.

Compreender as razões da conflitualidade permite alguma modulação, mas não mais. Saber  porque é que ela se manifesta, permite soluções.

Existe uma remota e eterna ambiguidade na relação entre o médico (genericamente alguém  dotado do poder de cura, real ou suposto) e o doente. As razões para essa ambiguidade histórica  são múltiplas e, como em todas as relações em que há desigualdade, podem tornar fácil o conflito.

Há uma dependência profunda do doente em relação a quem tem o poder de curar. Aquele que  cura tem acesso à intimidade física e emocional daquele que quer ser curado e, no limite, tem  sobre ele um poder de vida e de morte. Esta condição gera no doente sentimentos muito  vinculativos. Para além da dependência e do medo da perda, o mais visceral é uma reserva que se  aproxima do ódio, ausente do plano da consciência mas sempre com possibilidade de se insinuar.  Pode acontecer com subtileza numa situação de dúvida sobre um diagnóstico, sobre um  tratamento, no decorrer de um contacto pessoal menos empático. E pode explodir quando o  doente fica dominado pela convicção de ter sido desrespeitado ou de ser vítima de um erro.

O poder de um médico sobre o doente resulta apenas da sua aptidão para curar. Mas, se for  entendido como discricionário ou ameaçador, a ambiguidade amor-ódio sai da latência em que  está. A detenção de qualquer tipo de poder tem riscos, suscita sentimentos fortes, tanto mais fortes  quanto maior for o poder ou a percepção que os outros têm dele.

Este, não é um defeito do doente. É algo inerente à condição humana. Faz parte do esforço  instintivo para a auto-suficiência.

Devem ser poucos os agentes de saúde que nunca sofreram ofensas, ameaças ou, em casos mais  raros, agressões físicas por parte de doentes ou familiares. É reconhecido que nenhuma daquelas  atitudes seria possível sem consequências sérias noutro local ou circunstância. Mas são toleradas  num hospital ou num centro de saúde. Existem duas razões principais para a relativa impunidade  de toda essa escaramuça civil.

A primeira relaciona-se com o receio solidamente embutido em todos os médicos, sobretudo nos  médicos, de poderem ter errado em algum momento. A prática clínica é fortemente empírica, por  vezes com tempos de decisão muitos curtos, e está sempre próxima do erro. O receio que uma  averiguação de incidente venha a elucidar uma falha, ainda que menor ou justificável, e o facto de  muitas vezes estar assoberbado de trabalho e aborrecimentos, faz com que o agente de saúde  passe ao doente seguinte. E esqueça.

A segunda razão é muito anterior, primitiva e com raízes culturais profundas. Vem do princípio do  homem e da doença. Determinou inúmeras particularidades do estatuto do doente, as principais de  todas elas ainda presentes na mentalidade assistencial. Os doentes continuam a beneficiar de um  favor próximo da impunidade que desde sempre tem sido associado à condição de doente. A  doença foi sempre uma condição de reverberação emocional muito forte, para o doente e para a  sociedade. O desconhecimento das causas e mecanismos das doenças originou o recurso habitual  a explicações supranaturais – o doente, com todas as suas manifestações estranhas e assustadoras,  era o protagonista da maldade demoníaca ou de uma provação imposta por uma divindade. Por  uma razão ou outra, a má ou a boa, a sua condição conferia distanciamento e respeito. O modo  como esse distanciamento se traduzia dependia da interpretação social das manifestações da  doença. A dependência de uma causa maléfica originava a proscrição física e emocional. Era  outro o caso quando se arbitrava que fôra a mão divina a actuar para pôr um dos seus filhos à  prova. O doente ganhava então o estatuto de quase ungido, passava a ser beneficiário de  tratamentos que misturavam mezinhas e canja com tudo o que pudesse favorecer a intercessão  celeste.

Nos dias de hoje, apenas as canjas são menos usadas. Todos, mesmo os médicos mais  pragmáticos, olham o doente como largamente intocável, inatingível no seu sofrimento e  protegido, pela sua vulnerabilidade, do julgamento comum.

Por fim, de cada vez que alguém entra num hospital recebe o sopro subtil de uma entidade tutelar.  Os grandes hospitais ainda hoje têm por nomes São João, Santo António, São José, São Teotónio,  Santa Maria, ou ainda são das Misericórdias. É neste contexto dúbio, em que a responsabilidade  civil se derrete numa atmosfera de algum misticismo, que a impunidade dos doentes tem sido  cultivada.

A prática médica actual encontra-se fortemente baseada na tecnologia. Os exames  complementares e as técnicas de tratamento são poderosos, muitos, e podem ser erradamente  olhados como a essência estrutural do acto médico. Estas percepções aberrantes não são raras.  Quando assim acontece, o personagem do médico é menorizado e passa a ser visto pelo doente  apenas como seu parceiro numa luta sem fim para descobrir a análise certa, o exame indicado e,  depois, com toda a facilidade e inerência, definir o tratamento. Solicitar mais um exame  complementar de diagnóstico tornou-se um recurso de apaziguamento do doente. Para doentes  menos esmerados substitui a empatia e a sagacidade clínica, para todos o recurso a um  procedimento técnico é percebido como parte da atenção que o médico lhe dá. Esse pensamento  viciado encaixa com uma perfeição funesta na dificuldade cada vez maior dos médicos para  entrarem na obscuridade assustadora do ser humano – no que se chamava a alma, o espírito,  qualquer outra coisa que remete para a invisibilidade, mas existe – e onde frequentemente se  encontra aquilo que o doente pensa ser uma doença.

A alma humana não é mais opaca hoje do que no tempo do Camões e da alma gentil que se lhe  partiu. A dificuldade em a entender pode ser grande para quem não adquiriu, por formação ou  apanhado na rua da vida, algum jeito para o fazer. E pode ser absolutamente inacessível para  quem nega a sua existência, seja qual for o nome que se escolha, e pretende que o ser humano é  somente um dispositivo mecânico abandonado pelo fabricante no respeitante à manutenção.

Os profissionais de saúde são submetidos a uma carga formativa imensa, durante o curso e depois  na vida profissional. Os conhecimentos a assimilar são enormes e duplicam rapidamente. As  exigências nas classificações de acesso a um lugar tocam todos os limites imediatamente abaixo  da perfeição. Muitos profissionais recém formados têm um viés tecnológico fortíssimo, evoluíram  desatentos a tudo o que não fossem sistemas orgânicos e nomes com menos de seis sílabas.  Podem não saber quem foi Abel Salazar nem o que ele disse dos médicos que só sabiam medicina,  às vezes namoram mas por qualquer razão acham isso complicado. Os cursos ministrados  perderam gradualmente universalidade e descriminam mal entre médicos e licenciados em  medicina. A detecção, a interpretação e a capacidade de resolver a componente psicossomática de  um complexo de queixas, não merecem suficiente atenção no período formativo.

As circunstâncias de vida actuais estão cada vez mais afastadas da naturalidade e das condições  de resolução espontânea de conflitos. Os instrumentos mais antigos para a sua atenuação  desapareceram com a rarefacção das redes sociais de apoio, com a diminuição de influência da  igreja e de outras estruturas de agrupamento social. Ao mesmo tempo, deu-se uma brutal mudança  ou até inversão no modo de interpretar fenómenos sociais. Situações disfuncionais foram  despatologizadas ao mesmo tempo que se fez a medicalização de outras. Hoje, é possível viver  numa situação de sofrimento emocional grande e ouvir dizer que é natural, é mesmo assim e a  culpa é da sociedade. E é possível faltar ao emprego, ou cometer um crime, e ter esperança de que  a culpa seja toda atribuída a uma doença.

Este ambiente de grande confusão chega aos gabinetes de consulta com grandes cargas de apelo e  uma exigência arrogante de soluções. Do outro lado está um médico com pouca inclinação para  estados de alma e um reduzido tempo de consulta estipulado pelas autoridades. Há demasiadas  condições para que tudo corra mal e um desentendimento surja entre médico e doente.

A educação das pessoas e a sua formação em cidadania são fracas em Portugal. A ideia de que  comportamentos indesejáveis resultam da bonomia, generosidade, espontaneidade, franqueza,  impulsividade… ou seja, o nervo e a raça de um admirável povo do sul, são para manter. Não é  verdade, mas é inútil criar um ponto de atrito com quem pensa o contrário. A um povo  intrinsecamente triste não deve ser tirado o consolo da lisonja, do mesmo modo que a ninguém  deve ser recusada a qualidade da simpatia, o derradeiro elogio. Centenas de anos de história e  convulsões não mudaram muito os portugueses. Aquilo que se observa hoje no modo de gerir a  coisa pública, a domesticidade e as relações interpessoais, não difere substancialmente do que se  pode encontrar no passado.

Há uma alternância imprevisível entre a passividade extrema, que permite tolerar todas as afrontas  e injustiças, e a raiva cega que se reúne em magote e à qual não escapa nenhum cão morto. Quem  presta um serviço público é ao mesmo tempo prejudicado e beneficiário dessa ciclotimia. Os  portugueses suportam para além do limite a desconsideração e a ineficiência, esperam horas, anos,  por um atendimento e parecem sempre disponíveis para preencher mais um impresso. Esse  conformismo desincentiva a melhoria e cria no servidor público a ideia de que tudo é permitido e  que nenhum erro tem consequências. No dia em que alguém reage, a multidão até aí inerte coloca se atrás e faz coro, durante algum tempo há um burburinho, um bode é escolhido para expiação, e  depois tudo volta a ser como era antes.

É este ambiente onde se cruzam, nas instituições de saúde, doentes à beira de um ataque de nervos  e médicos com esperança de que tudo corra bem naquele dia.

Finalmente, existe uma última e grave razão para o avolumar da tensão no ambiente da saúde e  para as queixas dos utentes – a legitimidade, quando entre todas as reclamações alguma exprime  uma queixa justa – mesmo que a civilidade tenha saído coxa.

Os atrasos, a ineficiência, a aspereza no trato, são motivos de reclamação lícitos. Não é sensato  esperar compreensão de um doente que aguardou um ano por uma consulta, que se deslocou cem  quilómetros para ouvir um funcionário lacónico dizer que não há médico, que não sabe quando  haverá médico, nem quando voltará a ter consulta, e que não vale a pena insistir porque mais não  sabe.

Uma reclamação fundamentada merece resposta. Na versão mais económica compreende  aceitação, contrição, emenda e reparação. Numa versão completa deve incluir medidas para a  resolução definitiva da falta original – ou seja, não chega antecipar por excepção uma consulta  atrasada, devem ser criadas as condições para que mais nenhuma se atrase para além do razoável.

A queixa justificada pode conter alguma indignação. A ofensa, frequentemente extensiva ao  passado e ao futuro, a tudo e a todos, é inaceitável. É injusta, cristaliza o mau-estar, espalha para  além da zona de conflito uma disposição maligna para não conciliar nem resolver.

É muito delicado lidar ao mesmo tempo com a razão e a sem-razão. Uma reclamação justa tem de  ser acolhida com nobreza mas, se necessário, também com firmeza. O doente deve ser respeitado  até onde tem razão mas não lhe pode ser permitida a agressividade destrutiva. Alcançar esse  equilíbrio sem recorrer aos tribunais exige bom-senso e paciência.

Para além dos problemas na saúde e das outras condicionantes que moldam a insatisfação do  doente, existem fenómenos sociais que estão a introduzir mais dissonância neste concerto. Muitas publicações nas redes sociais são feitas em anonimato. Mesmo sendo relativo, porque é  sempre possível saber que coisa se esconde atrás de outra coisa, esse anonimato acentua nos  visados uma negra vontade de responder no mesmo tom, ou mesmo dar uso às mãos para conferir  maior peso à resposta. Mas não são modos.

O anonimato não é apenas uma pequena cobardia, ou não o é necessariamente. Pode ser um  recurso de quem está convencido que a sua razão não pode ser calada, para seu bem e da  humanidade sua conhecida. Podem não ser traiçoeiros, apenas têm uma coragem mais pequena do  que é costume. Temem ser accionados judicialmente – levar com um processo em cima, na  linguagem técnica das redes sociais – temem ser penalizados no futuro pelas suas vítimas.

Quando um utente ignora o livro de reclamações pode ser literal a sua ignorância – ignora mesmo,  não sabe, já ouviu falar mas pensava que era só nos restaurantes que havia esse livro. Mas não é  essa a razão mais importante. Muito mais frequentemente está em causa o descontrole perante  uma situação de grande pressão emocional – a doença própria ou de um familiar – e um vazio de  enquadramento dessa agonia por parte dos profissionais.

Se a essa circunstância se juntar uma espera de muitas horas para atendimento urgente ou de anos  para uma consulta; se depois dessa espera o doente depara com um profissional à beira da  exaustão ou em greve; se não lhe é dada uma explicação que respeite os motivos da sua ira e  perplexidade; se a emenda de uma explicação é pior que o soneto do silêncio, por ser rude e sem  empatia; se tudo isso se juntar num ambiente saturado de gente com percepções idênticas, algo de  grave pode acontecer. Se estiver presente alguém com uma propensão maior para a resolução  histriónica dos conflitos.

Pode acontecer que no fim, apesar de resolvido o pormenor clínico, ainda subsista o  descontentamento. É mais fácil suturar em dois planos um corte profundo da carne do que  acalmar uma escoriação da alma. A estratégia assistencial não dá atenção de modo regular às  componentes emocionais de um episódio clínico que foi traumático para além da sua gravidade  intrínseca e por razões imputáveis às condições de atendimento. O doente pode reconhecer a  competência com que foi suturado, mas vai para casa mordido de indignação por ter esperado sete  horas até ser atendido. Segue-se o extravasamento verbal na rede social.

Nem sempre é necessária tanta espera ou tanta gente, nem sempre ocorreu desrespeito ou má  prática. Com frequência um comportamento disruptivo releva de condicionantes (a)culturais. É necessário entender que o confronto entre partes é menos exigente do que o tango no que  respeita a protagonistas – dentro do possível os agentes de saúde devem usar de toda a discrição  para não se tornarem parceiros. E solucionar o que estiver na sua mão.

Os pressupostos de conflitualidade apresentados em pontos anteriores são largamente inacessíveis  a correcção. As grandes reformas serão dolorosas. Embora necessárias podem ter que aguardar  por uma substituição geracional.

Entretanto, algumas coisas simples podem ser feitas para reduzir os riscos de conflito entre  doentes e agentes de saúde.

Os grandes problemas de gestão da saúde não serão resolvidos a curto prazo. Ainda será mais  demorada ou impossível a superação de lapsos culturais e de educação. De imediato, devem  resolver-se os problemas que podem ser resolvidos e almofadar o tempo de espera até solucionar  os outros.

Para tanto é crucial principiar pela humanização dos serviços e, entre outras competências  adjacentes, criar uma boa rede de comunicação entre agentes de saúde e utentes. Os circuitos de  comunicação são críticos em situações de pré-desentendimento. Podem fazer a diferença entre a  resolução, quando funcionam, e a ruptura, quando não existem.

É rotina dizer que devem ser afectados à saúde, em particular ao SNS, mais médicos e  enfermeiros. Proclama-se essa necessidade com austeridade, como se as galinhas tivessem  nascido sem dentes naquela manhã. Os responsáveis políticos, reconhecem compungidamente que  é verdade e que estão a tratar disso. Mas há profissionais esquecidos, que são nucleares para a  humanização nos cuidados de saúde e dos quais existe igualmente uma carência enorme. A sua  presença abundante, pelo menos suficiente, contribuiria enormemente para a atenuação de muitos  problemas que levam à insatisfação dos doentes e à exasperação da ULS Santa Maria.

Os auxiliares de acção médica raramente são mencionados nas enormes conversas sobre os  problemas do SNS. Mas as suas funções são as mais importantes para a fluidez dos cuidados em  saúde. São esses profissionais que fazem o movimento físico dos doentes e das amostras  biológicas, são eles que assistem outros profissionais em procedimentos, que interrompem uma  tarefa para atender a outra mais urgente.

Deve ser dito que uma parte muito substancial dos atrasos na assistência aos doentes se deve à  inexistência de auxiliares de acção médica. Com enorme frequência não foi o médico que se  atrasou a observar o doente, foi a inexistência de alguém que o trouxesse; não foi o médico que  demorou a solicitar um exame, foi não ter ninguém que pegasse na maca e o conduzisse ao local  certo; não foi o enfermeiro que se esqueceu de colher sangue para análises, é o sangue que  aguarda alguém que o leve ao laboratório; pode não haver falta de macas, simplesmente não há  quem higienize; pode não haver uma congestão total dos espaços, apenas não há quem conduza  doentes para o exterior ou o internamento e desimpeça lugares.

O âmbito do trabalho cometido a um auxiliar de acção médica é extenso. E pode ser ajustado,  eventualmente com pouca dificuldade, porque muitos desses profissionais, feliz ou infelizmente,  têm habilitações académicas que permitem versatilidade.

É uma sina do fátuo espírito do português atirar-se a soluções vistosas e a empreendimentos de  encher o olho. A alma pelintra gosta de tudo em grande e em bom. Pequenos arranjos, soluções  discretas, não constituem desígnios à sua altura. Construir uma casa em terra em vez de um  castelo no ar é coisa de pobre.

Nas condições de carência generalizada em que o sistema de saúde se encontra, há uma enorme  quantidade de medidas simples e pouco dispendiosas que podem ter importantes efeitos na  melhoria dos cuidados aos doentes.

A ULS Santa Maria e a sua anunciada parceria com os tribunais foi o pretexto para alguns  parágrafos cautelosos sobre conflitos entre utentes e profissionais de saúde. A decisão do Santa  Maria accionar judicialmente doentes estará a caminho de ser abortada. Virá, eventualmente, a ser  retomada, ela ou outra medida que pretenda ser de fundo, noutro dia e em outro hospital. No  entanto, existem recursos para controle da conflitualidade que são mais simples, mais  apaziguadores e com efeitos colaterais positivos. É neste ponto que os auxiliares de acção médica  são retomados.

Dotar os hospitais de auxiliares de acção médica em número generoso permitirá tornar muito mais  expeditos todos os procedimentos que originam demoras, atrasos e ineficiência. E se lhes fôr  provida formação poderão vir também a desempenhar um papel de intermediação junto dos  doentes.

As medidas de fundo que resolvam os problemas na saúde serão sempre as mais importantes. São  elas que permitem que as pessoas sejam tratadas e bem tratadas em tempo útil. Porém, enquanto  esperam longamente para serem tratadas, esse tempo de espera deve ser assumido pelas  instituições. Um doente que pede uma consulta ou se inscreve num Serviço de Urgência passa a  estar ao cuidado da instituição a partir desse momento.

É neste ínterim e contexto – a desesperante espera – que pode ser importante dispor de alguém  com preparação adequada que acompanhe essa espera.

Mesmo num serviço de urgência, onde os tempos de resposta devem ser adequadamente curtos, é  desanimadora a enorme percentagem de casos que não têm urgência – são esses alguns dos  doentes mais inclinados ao protesto e à litigância. Não podem ser observados de imediato, embora  isso não seja grave para o seu estado de saúde. Mas podem ser abordados para uma explicação,  para inquirir de uma necessidade, para verem resolvidas situações de desconforto, para saberem  que não estão esquecidos. Um acompanhamento próximo e atencioso permitiria apaziguar ânimos  e reduzir a conflitualidade. No limite, pode identificar uma modificação inesperada no estado de  um doente e antecipar uma intervenção que evite a tragédia. A maior parte dos doentes ficaria  com uma compreensão das coisas para além do que está a sentir e das aparências. Não é possível  comprometer médicos e enfermeiros com esse trabalho. Existem outros profissionais que podem  ser chamados ao acompanhamento do doente em espera.

Os auxiliares de acção médica são cruciais para a normal fluência dos cuidados clínicos. Podem  ser igualmente importantes em outras tarefas que as circunstâncias actuais venham a justificar.  Uma delas é a intermediação, a gestão dos tempos de espera até à prestação de cuidados. Podem  ser eles a única presença visível da instituição junto do doente durante essas horas em que o  desespero e a ira passam de boca em boca. Eles, ou qualquer outro profissional que os hospitais  entendam. Que não serão médicos ou enfermeiros, porque não têm tempo. Profissionais que  assumam em nome das administrações e direcções clínicas que o tempo de espera de um doente  começa a ser um momento clínico. É um tempo de natureza diferente mas não é um tempo morto.  Pelo contrário, está vivo e geram-se nele muitos problemas.

Pode não ser uma boa ideia. Pode ser uma boa ideia mas não ser a melhor, e nesse caso os doentes  esperarão mais algum tempo pela solução ideal. Pode ser uma ideia mesmo muito boa mas levanta  problemas, problemas de toda a ordem que os sindicatos resolverão a seu tempo. Pode acontecer  tudo isso ao mesmo tempo e algumas pessoas especializadas discutirão qual é o melhor  inconveniente. Pode ser. Mas devia ser feita qualquer coisa. É que a melhor maneira de um rei  provar que não vai nu é sair à rua de calças e camisola.