Os problemas na saúde, na educação e na administração pública em geral revelam um traço comum: o poder de decisão é difuso e sem capacidade de responsabilizar seja quem for. Faz ainda parte do problema do sector público uma quase generalizada violação do Estado de Direito, como se percebe pela dimensão do problema dos precários.
Alguns exemplos ajudam-nos a expor melhor o que parece passar-se, ficando aqui o desafio para se estudar o tema.
Nas escolas, os professores perderam a sua autoridade. Os exemplos são muitos nas notícias a que temos assistido nos últimos anos, nomeadamente de agressões de alunos e pais a professores, que são já um sintoma. Essa perda de poder, fundamental para disciplinar, parece ter tido a sua origem dentro da escola. Quem devia exercer as funções de direcção – seja qual for a designação que se queira dar – foi deixando de o fazer. Foi visível na primeira fase desta degradação, quando alguns, muito pouco professores, é certo, começaram a faltar, usando, por exemplo, atestados médicos sem que estivessem realmente doentes. Nada lhes acontecia e eram tratados da mesma maneira que os seus colegas que eram assíduos e bons profissionais. Porque nada faziam os responsáveis pela escola? O receio de serem desautorizados ou de uma história nas televisões podem ser as explicações – um sindicalismo que premeia mais quem é sindicalizado e não a competência, a partidarização da administração pública e a hipermediatização são os três factores possíveis para esta diluição do poder na escola.
Hoje os professores estão afundados em tarefas burocráticas, no que pode ter sido a via dos governos para disciplinarem a escola. Sem colocar de parte a hipótese de terem usado também esses mecanismos para combater estatisticamente o insucesso escolar.
A ausência de liderança que responsabiliza e assume responsabilidades deu lugar a uma teia burocrática que, obviamente, não garante melhor ensino. Claro que há excepções, mas o resultado de tudo isto tem sido a degradação da escola pública, com o consequente agravamento das desigualdades: quem tem dinheiro e não tem por pero uma boa escola pública coloca os filhos numa escola privada onde há liderança, hierarquia e disciplina.
Na Saúde o problema é semelhante. O poder dos médicos foi sendo reduzido, inventaram-se os administradores hospitalares e criaram-se conselhos de administração, na sequência da conversão de alguns hospitais em empresas. Quem hoje precisa de cuidados de alguma complexidade num hospital público pode ver os médicos a prescreverem exames que levam tempos e tempos por fazer, sem que se perceba bem a razão – mesmo quando são pedidos com urgência – ou doentes que são esquecidos quando foram fazer um exame. Os médicos estão dependentes da boa vontade de toda uma estrutura que vai dos maqueiros aos administradores hospitalares. E exactamente como os professores, os médicos foram afundados em tarefas burocráticas que têm supostamente o objectivo de permitir um maior controlo da despesa e a sua presença nos hospitais. Sem sucesso, como se percebe. No meio estão os enfermeiros e os técnicos de diagnóstico e terapêutica, igualmente apanhados neste caos.
Para agravar ainda mais a situação – ou parte integrante do problema – criaram-se desigualdades adicionais com os contratos individuais de trabalho e com tabelas salariais que colocam quase no mesmo patamar chefias e subordinados.
Décadas de políticas de remendos, algumas com o objectivo de resolver problemas conjunturais concretos, outras tendo apenas em vista reduzir o poder de uma classe, colocando-a contra a outra, é a explicação possível para esta manta de retalhos que tem degradado dois dos pilares dos serviços públicos: a Saúde e a Educação.
O Estado dá-se igualmente ao luxo de não cumprir as regras que impõe às empresas privadas. Percebe-se, pelo que se passa nos hospitais, que há pessoas a trabalharem para além do que pode ser humanamente exigível e muito para lá do que a lei o permite. Percebe-se pela dimensão do problema dos precários que a legislação laboral, nas suas regras mais básicas, não é cumprida. Há entidades públicas que não resistiriam a uma inspecção da Autoridade para as Condições de Trabalho.
Era urgente que se reconhecesse que serviços públicos fundamentais como a Saúde e a Educação estão caóticos, desorganizados e sem um comando claro que exerça o poder, assumindo e pedindo responsabilidades às equipas que lidera. Todos aqueles que querem o Estado Social prestavam um grande serviço ao País se se concentrassem na prioridade de organizar a Saúde e a Educação. O que passa forçosamente por dar poder a quem lidera, sem lhes tirarem o tapete à mais pequena contrariedade. Nas escolas sem dúvida os directores, nos hospitais reforçar o poder dos médicos.
Por mais dinheiro que se coloque no sector público, nada poderá melhorar se esta desorganização persistir. E esta desorganização vai persistir enquanto não se der poder a quem lidera, quer na sua vertente de puro exercício de poder – sem medo das palavras: poder de mandar com instrumentos para punir quem não cumpre e premiar quem se destaca -, quer na vertente de assumir auto-responsabilização.
Podemos ter esperança de que isso venha a acontecer? Não há, de facto, sinais de esperança. Especialmente depois de, com o caso do roubo de material na base de Tancos, ver que a desresponsabilização já contaminou até a instituição militar, aquela que se esperava que ainda estivesse imune à falta de profissionalismo sem consequências.
Porque só a classe política pode resolver um problema destes, e porque é preciso uma actuação a médio prazo e porque seria necessário um amplo entendimento da direita à esquerda – não chega PS com PSD – continuaremos a assistir à degradação dos serviços públicos. Nunca haverá dinheiro que chegue porque o problema é muito mais complexo e grave do que a falta de dinheiro. É liderança e organização que a Saúde e a Educação precisam.