Carlos Moedas discursou no 5 de Outubro. Naturalmente, a esquerda exaltou-se umas horas depois, tanto na Câmara de Lisboa como na Assembleia Municipal, a pretexto de imigração e sem abrigo. Naturalmente, o jornalismo respeitável tratou de averiguar se os sem-abrigo estão ou não a ser instrumentalizados como arma de arremesso político. A resposta é sim, estão a ser instrumentalizados e vamos ver de que maneira.
Ouvindo o discurso do 5 de Outubro, percebe-se que, para efeitos desta agitação, Moedas disse duas coisas. A primeira, é que tinha conseguido retirar da rua as pessoas que viviam em tendas em cima do passeio no Jardim António Feijó, à volta da Igreja dos Anjos, em Arroios. Essas pessoas terão sido alojadas em hostels. Só isto já dói nos joelhos da esquerda. Transcrevo a segunda: “Hoje assistimos a manifestações de um drama humanitário que nos envergonha a todos como país. Nós precisamos de imigração, mas não podemos aceitar uma política de portas escancaradas que conduz à desordem, dá espaço a redes criminosas, e multiplica casos de escravatura moderna.” Moedas faz aqui um apelo ao governo central e tem toda a razão.
A Câmara de Lisboa está perante um problema adicional que resulta de políticas acima das suas. O governo da República é quem tem tutela e competências para definir políticas de imigração; mas as consequências dessas políticas e respectivos erros afectam especialmente Lisboa, por ser a capital do país, por morarem nela os ministérios, o Parlamento, os serviços e as instalações do Estado central, pela presença das redacções dos jornais e canais de televisão, pela visibilidade que as agitações alcançam quando agitam Lisboa. A Câmara vê-se obrigada a dar uma resposta porque tem responsabilidades no bem estar dos munícipes e no equilíbrio da própria cidade. Mas a Câmara não tem instrumentos para resolver a origem do problema, já que ele não depende de políticas municipais. Não está nas suas competências. Por isso é uma situação desesperante, irresistivelmente exposta à instrumentalização.
Toda a vida os problemas persistentes, ou difíceis de resolver, se transformaram em armas políticas; desde que o mundo é mundo foram instrumentalizados e alvo de demagogia. Este é um caso entre uma longa lista de casos exemplares. A questão dos sem abrigo já tinha há muitos anos despertado o interesse da extrema-esquerda e respectivos activistas, infiltrados nas “associações” até à medula, para contrariar as ajudas das Câmaras e das Juntas de Freguesia. Só assim, morando e dormindo em cima do passeio, aquelas pessoas podem ser usadas na litigância permanente de que os activistas se alimentam a propósito de habitação. Querem levar-nos a acreditar que elas são o produto imoral da falta de habitação. É falso. Não é um problema de habitação.
A questão dos sem-abrigo é um problema muitíssimo complexo de saúde mental, de álcool, de drogas, de modo de vida, e agora também de imigração. A imigração acrescentou-lhe um elemento de puritanismo woke: reduzir os números de sem-abrigo é reduzir os números da imigração e, portanto, um exercício de racismo, xenofobia, e todos os pecados abjurados pela seita.
A extrema-esquerda vive no Inferno, culpa-nos do calor, e quer à força arrastar-nos para junto dela. Usa esse elemento precioso do puritanismo woke, um puritanismo quase religioso, sujeito a cruzadas e perseguições; e os activistas – das associações, do jornalismo, ou da universidade – definem os dogmas. Só se pode falar da maneira certa, sob pena de heresia. E a maneira certa muda a cada minuto, de acordo com os novos dogmas e as novas taras da extrema-esquerda na sua raiva ao capitalismo. Todos os dogmas e preceitos da incultura woke são maneiras inventadas pela extrema-esquerda para se opor ao capitalismo. Têm este laço inescapável entre elas, uma espécie de assinatura doutrinária sem lógica interna e com dois ou três milímetros de profundidade intelectual.
O problema dos sem-abrigo, por estar agora ligado à imigração, tornou-se mais difícil de contrariar. Entrou no campo da guerra santa pela porta do puritanismo woke. Não se pode encontrar uma solução porque a esquerda não aceita a perda do poder que este puritanismo lhe dá.